MORTE CEREBRAL
JPPereira 30.06.2012
Na altura em
que escrevo este artigo, os portugueses estão em pleno síndroma de abstinência,
ou seja, socorrendo-me da Wikipédia, manifesta-se o "conjunto de
modificações orgânicas que se dão em razão da suspensão brusca do consumo de
droga geradora de dependência física e psíquica", que se "caracteriza
em geral por alucinações e crises convulsivas".
Entre as drogas que geram síndroma de abstinência conta-se o álcool, a heroína,
o ópio, a morfina, etc. Eu
acrescento o futebol. Não os jogos nos campos, onde vinte e duas pessoas
disputam uma bola que querem meter numa baliza adversária, porque esse é o
menor dos aspectos. Aconteceu quatro ou cinco vezes, no último mês, ocupando a
quem os vê a todos mais ou menos entre dez e quinze horas distribuídas por um
mês. Essas horas podem ser intensas, dramáticas ou cómicas, interessantes ou um
tédio, mas não são suficientes para serem tão brutalmente opressivas como as
muitas centenas de horas concentradas nesse mesmo mês, em que por todo o lado,
na televisão em primeiro lugar, na rádio, nos jornais, nas conversas de café e
salão, nos cartazes de rua, nos ajuntamentos inebriantes e inebriados, se gerou
uma forma de histeria colectiva, tão euforizante como o ecstasy.
Eu já não me surpreendo
com quase nada, mas seria motivo para surpresa, ver que dizer isto - de
tão evidente que se trata de um excesso - provoca uma reacção de fúria contra os "intelectuais
antifutebol", que atinge o seu paroxismo nos "intelectuais
pró-futebol", cada vez mais e mais agressivos em defender o seu menino de
ouro. Claro que os
"intelectuais antifutebol" se contam pelos dedos de uma mão só, são
fios de voz na gritaria colectiva, capitaneados por mim, que, como se sabe,
esmago o país todas as vezes que abro a boca ou escrevo uma linha, provocando
uma irritação sublime, próxima da acusação de traição à pátria, e a vontade de
me expulsar para qualquer Ilha do Diabo.
Como de costume também, são aprendizes de intelectuais os que mais gritam
contra os traidores, que não "sentem como os verdadeiros
portugueses", e nos blogues, a forma dominante actual do pensamento débil,
isso é muito comum. O que vale a pena dizer é que se "assumam",
pintem a cara, vão lá urrar diante de um ecrã gigante, e beber umas cervejas,
porque estão mais dentro do seu papel. Com aquele masoquismo que caracteriza os
verdadeiros intelectuais, ei-los a defenderem que é normal passar-se um mês sem
outro "público" no "espaço público" que não sejam
adolescentes aos molhos a saltar e umas senhoras do género das que vão para as
portas dos tribunais a exigir a pena de morte para um qualquer putativo
criminoso, a gritar pelo Ronaldo. E normal é milhares de comentadores a explicarem os feitos do
treinador, cujos defeitos enunciavam há um mês, da equipa "esforçada"
que nunca desiste, e que há um mês descreviam como um grupo de mediocridades
dirigidas por estrelas que se estavam a "marimbar" para a equipa
pátria e que só se preocupavam pelo Real Madrid. Também aqui o poder tem muita
força e o homem ganhou e os outros jogaram bem, logo os elogios passaram a
norma com tanta veemência como as críticas do passado. Pelos mesmos.
Claro que tudo isto é muito interessante para um antropólogo, ou um sociólogo,
ou um psicólogo de massas, ou mesmo um observador de Sirius qualquer que cá
venha, e que podem acrescentar mais uns exemplos a um catálogo que inclui
ingleses, brasileiros, argentinos e gente que mata pelo futebol, entra em
guerra pelo futebol, bate na mulher e nos filhos por causa do futebol, mas está
tudo bem. Não somos só nós, escreve-se, não somos os piores, escreve-se, o que
é verdade, mas a mim cuidam-me mais os nossos e não os deles.
Os argumentos intelectuais são mais do que conhecidos, a começar pela
glorificação do excesso como comportamento genuíno e verdadeiro, num mundo em que prevalece a
hipocrisia e o disfarce, as conveniências e as obediências. A histeria colectiva aparece
assim como uma necessidade catártica, que de vez em quando permite uma
libertação de um quotidiano infeliz. Está bem, mas é pouco, é poucochinho.
Outra linha de escrita dos intelectuais pró-futebol é a linguagem orgástica,
para defender que o futebol é uma espécie de orgasmo colectivo democrático e
popular, bom para os sentidos, mesmo que bruto e fugaz. É matéria romanesca, já
está escrita e descrita, mas é pouco, é poucochinho. O povo como criança grande
ou adolescente petrificado, sonhador e generoso, capaz de todos os sacrifícios,
e que precisa de exercitar a alma de vez em quando, também não é novidade. Mas
esta glorificação intelectualizada do escapismo tem muitos adeptos.
Em Junho, a pátria podia ter batido a Alemanha de Merkel - não bateu -, e
depois regressar triste e arrebanhada às repartições, às filas de trânsito, à
transumância algarvia dos que ainda podem ir, e a outras formas de cinzentismo
de que os intelectuais não gostam porque não são o Kafka. Também sabemos isso.
Eu não sei é se estes intelectuais pró-bola percebem o desprezo que têm pelo
"povo", cujas
exibições de grunhice eles apresentam como genuínas manifestações do ser
português, pelo menos no futebol onde somos "grandes", enquanto somos
pequenos em tudo o resto. Não, eu gosto demasiado do meu povo para achar
que "este" é o meu povo, ou que este é o seu estado mais
"natural" e genuíno.
Mas este é apenas o intróito porque o meu ponto é outro: é de que estamos
perante uma construção que tem muito de artificialismo, que é gerada
essencialmente por uma droga sintética, na qual se movimentam muitos
interesses, dos media em crise, desesperados por audiências e
publicidade, por equipas de Mad Men à portuguesa, e pelas empresas de cervejas que
procuram um público cada vez mais novo, que beba até ao estado de estupor,
mesmo que depois falem gravemente dos malefícios do álcool.
Significa isso que o perverso capitalismo é que gera a histeria futebolística
para ganhar uns milhões de euros? Seria simples se fosse assim, embora também o seja. Há outras
coisas que também aumentam este efeito, que funciona em círculo vicioso. As
raízes estão cá fora, mas o adubo, os esteróides, a estufa, tudo o resto está
lá dentro, dos media
em particular. Até os pesticidas contra as ervas daninhas.
O problema é que este é um
fenómeno que se está a agravar de ano para ano. Eu podia ter pegado num artigo
antigo e reproduzi-lo outra vez, porque o que se passa não é novo. Mas o
que é novo é que cresce cada vez mais, com uma dimensão abafante sobre tudo o
resto, numa suspensão colectiva do espaço público a favor do futebol. Os
intelectuais pró-bola alimentam consciente ou inconscientemente o dualismo
poder-oposição, transportando-o para o terreno do futebol "nacional",
ou seja da selecção de "todos nós", criticando o dissenso e
valorizando o "consenso", e acham que a chamada de atenção para o
monotematismo obsessivo destes dias se destina a "preferir" que as
pessoas falassem da austeridade, ou das medidas governamentais, ou da Europa.
Também, mas longe de ser só isso. Também, porque neste mês de rasoira
futebolística os portugueses que trabalham perderam um número significativo de
direitos sociais, viram as leis laborais ser invertidas a favor do patronato, e
assistiram a uma crise europeia em que caminhamos para a submissão completa, em
que Portugal passa a uma colónia de papel passado. É normal que eu considere
bizarro tanto patriotismo de pacotilha induzido pela histeria mediática ocupar
o lugar de um sobressalto inexistente com a proposta para que passemos, sem
disfarces, a colónia. Quais oitocentos anos de história, qual glória nos
relvados, qual quê! Tretas. Eu, pelo menos, ainda estranho, nem ainda se me
entranhou.
E por isso continuarei a
considerar anormal, excessivo e socialmente anómalo que se queira ter um país
desenvolvido, e ter a RTP1, a SIC, a TVI, a RTP Informação, a SICN, a TVI24 e
muitos mais canais a passarem todos ao mesmo tempo e durante o dia todo apenas
futebol, entrevistas a populares sobre futebol, comentários sobre futebol,
entradas e saídas de camionetes da equipa, adeptos polacos ou ucranianos (da
equipa portuguesa, claro), pequenos-almoços ou balneários, fans e
magotes, tudo ao mesmo, numa linguagem rasteira, imediatista, com logomaquias
de horas sobre nada e coisa nenhuma, seguidas de momentos de histeria ou
depressão colectiva televisionada em directo.
Tudo isto está bem longe de ser gostar de futebol, "vibrar" pela
equipa, ver os jogos, entusiasmar-se ou desgostar-se. Está muito para além
disso. Isto é lavagem ao
cérebro, e está cada vez pior.
(Versão do
Público de 30 de Junho de 2012.)