Um raio, um problema estrutural ou as obras. O que fez cair a Morandi, um “fracasso” de ponte?
PIERO CRUCIATTI/AFP/Getty Images
O ministro do Interior italiano quer “os nomes e os apelidos de todos os responsáveis passados e presentes” pela queda da ponte Morandi em Génova. Matteo Salvini não aceita “que se morra assim em Itália”, como morreram pelo menos 25 pessoas esta terça-feira na sequência do colapso do viaduto Polcevera (o seu verdadeiro nome). Por isso, diz que vai “até ao fim para apurar as responsabilidadesdeste desastre inaceitável”. Já reconhecendo que “agora é tempo de respeitar esta grande dor”, o ministro da Justiça, Alfonso Bonafede, não deixa de adiantar que “todos aqueles que tiverem de pagar, irão pagar”. Mas quem são “aqueles”? Ou se não foram “aqueles”, mas a natureza?
No momento em que o troço de 200 metros da ponte Morandi colapsou chovia torrencialmente em Génova. Uma enorme trovoada caía sobre aquele que é um dos principais portos italianos e impedia que se circulasse muito depressa na autoestrada A10, que liga Génova a Savona. “Pensámos que seria um trovão muito próximo de nós”: o relato é de um dos moradores dos prédios a cerca de cinco quilómetros da ponte que colapsou, que tem 1,102 km e está sobre um pequeno rio que desagua no porto, sobre linhas de caminho-de-ferro, zonas industriais, comerciais e até residenciais. A pergunta surgiu de imediato: “E se a ponte foi atingida por um raio?”. O coordenador da especialização de estruturas da Ordem dos Engenheiros, Eduardo Cansado Carvalho, admite ao Observador que é um cenário possível. Porque esse raio pode ter atingido um dos tirantes de suporte.
O tirante é composto por um cabo em aço que estava neste caso protegido por betão. Mas se uma descarga elétrica atingir um cabo de aço em tensão ou tiver contacto com alguma parte metálica por insuficiente de cobertura pelo betão, é uma possibilidade para a causa imediata do colapso deste elemento. E, neste caso, terá sido isso que esteve na origem da queda de uma grande extensão do tabuleiro rodoviário: um dos cabos de um dos lados partiu-se, seguindo-se o do outro lado e tudo se desmoronou.
Mas para este especialista, não bastou apenas isso. O acidente na ponte viaduto em Itália resultou de um problema estrutural, que já lá estava, mas terá sido desencadeado por um conjunto de fatores.
É que o modelo utilizado na ponte Morandi tem mais de 50 anos e já não se usa por razões de segurança (embora exista uma semelhante em Portugal). Bastou que um tirante — que suporta as torres que sustentam o tabuleiro da ponte — se partisse para que os outros entrarem em desequilíbrio. Mas porquê esta terça-feira?
Falhas estruturais? Uma ponte do mesmo arquiteto caiu em 1964
Se a tempestade não provocou a queda, causou, pelo menos, congestionamento do trânsito — o que pode ter sido a última gota de água. Segundo Eduardo Cansado Carvalho, terá sido um problema estrutural que originou a tragédia de Morandi, nomeadamente, a queda de um dos tirantes que suportava uma das torres da ponte que sustentavam o tabuleiro. Cada torre tem quatro tirantes e basta um partir-se, como aconteceu, para os outros entrarem em desequilibro provocando uma queda em cadeia dessa torre que provocou o colapso de entre 100 a 200 metros do tabuleiro rodoviário.
É como duas pessoas a puxar por os dois lados de uma corda, se uma deixar cair a outra também cai”, ilustra este especialista.
Esta solução tem mais de 50 anos e, atualmente, já não se usa por razões de segurança, porque o número de tirantes não oferece redundância necessária para evitar o colapso do tabuleiro em caso de falha de um dos elementos. A ponte Morandi é uma das primeiras pontes deste modelo.
Em Portugal, existe apenas uma ponte da primeira geração deste tipo, que é da autoria de Edgar Cardoso e fica na Figueira da Foz. Foi a primeira ponte atirantada em Portugal e ficou concluída em 1982. A ponte Vasco da Gama também é uma ponte atirantada, mas tem muito mais torres e tirantes.
Uma ponte gémea da ponte Morandi, desenhada pelo mesmo arquiteto Riccardo Morandi, colapsou em abril de 1964. A ponte General Rafael Urdaneta, construída sobre o Lago Maracaibo, na Venezuela, caiu parcialmente depois de uma colisão com um petroleiro, provocando a morte de sete pessoas.
Os avisos que vinham de trás
Em 2016, Antonio Brencich, um professor da Universidade de Génova, especialista em estruturas em cimento armado, já tinha avisado: “A ponte Morandi é um fracasso da engenharia. Em breve, terá que ser reconstruida porque os custos de manutenção serão exorbitantes e excederão os de reconstrução”, afirmou numa entrevista ao site ingegneri.info. Acrescentando dados importantes: “Basta dizer que, no final dos anos 90, 80% do que foi gasto em construção já havia sido gasto em obras. Dados emblemáticos. E desde então quase vinte anos se passaram…”
Com o projeto aprovado em 1963, a ponte Morandi foi inaugurada quatro anos depois, em 1967, pelo presidente da República, Giuseppe Saragat. E nunca mais pararam as polémicas. Em cimento armado, e com um sistema conhecido como Morandi M5, os custos de manutenção foram sempre elevadíssimos para evitar riscos de colapso.
Em 2009, segundo o La Stampa, chegou mesmo a colocar-se a hipótese de ser demolida a também conhecida como ponte Brooklin de Génova. Demoraria 8 a 12 meses a ser feito evacuar provisoriamente as residências e locais comerciais à volta temporariamente, mas não demolir qualquer fábrica. A proposta chegou mesmo a ser colocada para consulta pública, mas a hipótese caiu por terra.
Desde sempre que a ponte tem de estar em constante vigilância e obras de conservação, tendo mesmo sido instalada uma grua-ponte para a manutenção em curso desde 2016. Uma manutenção mais profunda nas fundações e na estrutura vital do viaduto. A publicação que autorizava as obras saiu em Diário da República a 27 de abril e apontava para um total de 20 milhões, dos quais 14,7 para mão-de-obra e 5,4 para segurança.
Peso a mais da ponte? Qual foi a gota de água?
Que condições estavam reunidas para que o tirante da ponte Morandi se partisse esta terça-feira? A resposta a esta pergunta é difícil. O engenheiro Eduardo Cansado Carvalho admite que um aumento da carga no tabuleiro, – o colapso aconteceu em hora de ponta – nomeadamente com a circulação de um ou mais camiões pesados (3 TIR cairam, e é visível pelo menos mais um sobre a parte da ponte que ficou intacta) pode ter sido a gota de água que fez transbordar o copo.
O copo estava cheio e bastou essa gota para que a carga ultrapassasse a capacidade de resistência, mas a raiz do problema é mais antiga. Para garantir a segurança, nunca se deve permitir que o copo fique mais de metade cheio” ilustra.
Considerando que este tipo de colapso não é normal, o especialista da Ordem dos Engenheiros também assinala que uma queda desta dimensão resulta sempre da conjugação de fatores e não apenas de uma causa. E neste caso estes serão os fatores a considerar. Mas para este engenheiro, o “problema original estava já na concepção:” Esta é uma solução vulnerável devido à falta de redundância e reservas de resistência insuficientes, é por isso deixou de ser utilizada.
Trabalhos de manutenção mal feitos? Ministro diz que sim
No momento do colapso, a ponte encontrava-se em obras. Como já se disse, em 2016, arrancaram trabalhos de “consolidação do pavimento do viaduto”, clarificou a empresa Autostrade per l’Italia que assegura a manutenção da ponte — apesar de não ter sido a responsável pela sua construção, num comunicado emitido esta terça-feira.
É esta mesma empresa que o ministro italiano das Infraestruturas e Transportes, Danilo Toninelli, responsabiliza pela tragédia. O ministro defende que “os trabalhos de manutenção não são feitos devidamente” e que este episódio “demonstra-o”.
Quem for identificado como responsável deve pagar até às últimas consequências. Agora é totalmente prematuro apurar quem foi o responsável”, acrescentou ainda.
Não tardou a que a empresa reagisse e negasse o que tinha sido dito por Danilo Toninelli. “Os trabalhos e o estado do viaduto estavam sujeitos a constante observação e vigilância”, garante a empresa apontando que foi até “instalada uma ponte suspensa” para permitir que as “atividades de manutenção fossem realizadas”.
Além do problema original de concepção, a “manutenção e monitorização é fundamental para evitar este tipo de colapso que é muito raro”, reconhece Cansado Carvalho. O responsável admite que é um pouco “estranho” que um programa de monitorização adequado não tivesse detetado os sinais de risco de colapso. A manutenção, diz, é feita “na esperança de que os problemas possam ser identificados a tempo de evitar um colapso desta dimensão com uma intervenção adequada”. Não havendo essa monitorização, o problema não seria identificado, explica. Uma falha na monitorização, seja por insuficiência de recolha de dados ou por incapacidade de leitura desses mesmos registos, aumenta a vulnerabilidade já identificada.
A par dos problemas estruturais e de possíveis falhas de monitorização, haverá depois uma causa imediata — que não está ainda identificada mas que, neste caso, poderá ser o facto de a carga no tabuleiro ter sido foi superior à resistência. Como também já vimos o cenário do raio a atingir o tirante também é admissível, Cansado Carvalho recorda um caso que aconteceu numa ponte grega, mas que foi reparado sem consequências de maior porque a estrutura tinha mais apoios.
Mas o engenheiro sublinha ainda que “na prática o problema já lá estava”.
Em Portugal, o único caso comparável, pelo menos na dimensão da tragédia, foi a queda da ponte de Entre-os-Rios em 2001 que causou a morte a 59 pessoas. Este caso levou à demissão imediata do ministro das Obras Públicas, Jorge Coelho, que assumiu a responsabilidade política da tragédia e vários técnicos foram levados a julgamento, embora nenhum tenha sido condenado.
O coordenador da Ordem dos Engenheiros explica que a queda da ponte Hintze Ribeiro deveu-se a causas completamente distintas. Neste caso, houve um problema numa das fundações do pilar que cedeu porque o rio escavou o respetivo suporte. Era uma ponte muito mais antiga, mas também aqui houve uma falha de monitorização e deu origem a uma pequena revolução nos trabalhos de monitorização e inspeção de pontes em Portugal que passaram a ser muito mais exaustivos e escrutinados.
Em Génova, estão confirmados 26 mortos, mas os trabalhos de resgate devem demorar entre a 10 a 15 dias e as autoridades admitem que o número de vítimas “aumente significativamente”.