quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Reflexão- Henrique Neto

O Governo aceitou, finalmente, que não existe alternativa para Portugal mas assumir a bitola UIC (vulgo bitola europeia) e que as tecnologias alternativas que o Governo dizia existirem eram imaginação dos governantes, acabando agora por darem razão aos críticos que publicaram o Manifesto da “Ilha Ferroviária”. Ora, com esta vitória, porque será que não estou satisfeito?

1. É fácil de explicar. Como sempre, o Governo não tendo uma visão estratégica integrada dos problemas e não tendo ministros com a experiência necessária, decide o que fazer de acordo com as opiniões que lhe são vendidas por conselheiros, os quais são assessores de empresas com interesses diversificados, de que resultam com frequência contradições graves. São exemplos disso o porto do Barreiro, o aeroporto do Montijo, a linha circular do Metro e a bitola ibérica na ferrovia. Estou a esquecer os erros anteriores de José Sócrates.

2. Na ferrovia, havendo interesses ligados à manutenção da bitola ibérica – Medway, empresas de engenharia, construção civil, vendedores de material ferroviário –, o Governo optou por construir a ferrovia por duas vezes, numa primeira fase em bitola ibérica e numa segunda oportunidade em bitola UIC. Que isso custe muito mais dinheiro parece não ser um problema, já que representa mais negócio para os consultores e as empresas envolvidas. Uma outra explicação reside na possível existência de um acordo secreto entre António Costa e a Medway para manter a bitola ibérica durante um certo prazo, a fim de permitir rentabilizar a compra da CP Carga.

3. Perguntemo-nos agora: o que pode justificar o Governo insistir na bitola ibérica, nomeadamente em linhas novas e em traçados do século XIX, quando todos os países europeus que tinham outras bitolas, nomeadamente os nossos vizinhos espanhóis, optaram pela coexistência das duas bitolas no seu território e Portugal decidiu perder mais dez anos com o devaneio de manter a bitola ibérica nas novas linhas? Ou o que pode justificar construir uma linha de Lisboa ao Porto (parte do Corredor Atlântico) por fases e condicionada pelo traçado existente? Ou o que pode justificar o Governo não dar prioridade às mercadorias ou a linhas polivalentes para passageiros e mercadorias?

4. Por alguma razão o Governo omite sempre parte da informação pertinente. Omite a questão da ligação à Europa, o Corredor Atlântico, a próxima liberalização do mercado ferroviário e as alterações que isso implica nos transportes de toda a Europa. Também não fala do futuro do transporte rodoviá-
rio, no contexto da descarbonização e da utilização das energias fósseis. Ou o que fazer com o transporte de camiões em plataformas ferroviárias que, a meu ver, será o futuro. Mais, um Governo que se proclama de moderno foi desenterrar, mal, decisões com vinte anos, recusando-se a olhar de forma integrada o futuro dos transportes na Europa. Por exemplo, o que pode justificar gastar dinheiro para soluções até 2030, bitola ibérica, para rever dentro de dez anos? Investimentos como estes fazem-se para um mínimo de cinquenta anos e não para dez.

5. A confusão que vai no Governo é evidente. Acabo de ler que a ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, disse o seguinte: “A nossa prioridade não é a ligação entre Madrid e Lisboa. Já temos ligação. Porque de Madrid para Lisboa vamos de avião. A nossa prioridade, certamente, é o eixo Atlântico, Lisboa, Porto e Vigo”. A seguir declarou não aceitar imposições de Espanha. Saberá a senhora que, de acordo com a União Europeia e o Dr. António Costa Silva, o avião vai desaparecer para distâncias até mil quilómetros? Saberá ela que, podendo concordar-se em não aceitar imposições de Espanha (que de facto o Governo anda há anos a aceitar), existe uma coisa chamada negociações e que hoje somos um País da UE, para o poder fazer em Bruxelas?

6. O ministro Pedro Nuno Santos também entrou no debate e declarou:” A ligação de alta velocidade será a Norte, por Vilar Formoso, muito provavelmente. O que o Governo português não quer é que a solução seja imposta. Foi isso que transmitimos na cimeira ibérica, e isso é muito importante”. Saberá o ministro que aceitámos a ligação a Sul durante o Governo de Durão Barroso, que essa ligação começou a ser posta em prática pelo socialista José Sócrates e que o seu próprio Governo está a construir a ligação, ainda que em bitola ibérica e em via única, a Sul por Beja? Qual a vantagem de criar mais confusão e mais indefinição sobre o que queremos?

7. A declaração mais saborosa sobre a ferrovia pertenceu, contudo, ao Primeiro-Ministro, quando disse: “Espero que (este enorme esforço de investimento) seja uma forma de fortalecer a nossa indústria de construção”.

Destas declarações a conclusão parece óbvia, cada governante fala do que lhe vai na alma. Ana Abrunhosa acha que as decisões devem ser locais, um absurdo quando se trata de decisões estratégicas para cem anos. Pedro Nuno Santos pensa em concorrer para secretário-geral do PS e dá jeito ser o durão da esquerda e vamo-nos a eles, os espanhóis. António Costa, que tem a responsabilidade das finanças do partido, pensa na construção civil.  Infelizmente, nenhum deles sabe do que fala e o desastre dos investimentos públicos, ferrovia incluída, aí estão para o atestar. Até quando?

*

Quando há vinte anos comecei a escrever sobre a ferrovia, as minha ideias eram claras. Em primeiro lugar, a oportunidade única de fazer depender a Galiza do aeroporto Sá Carneiro e a economia galega do Norte de Portugal. Passaram vinte anos e foram os espanhóis que fizeram o inverso, levando o Corredor Atlântico até à Galiza, ao ponto de António Costa aconselhar os habitantes de Trás-os-Montes a aproveitarem o comboio espanhol que passa a poucos quilómetros da fronteira. A minha segunda prioridade era a ligação do Norte e Centro de Portugal à Europa para mercadorias, mas sem passar por Madrid, seguindo a opção dos nossos antepassados, de ligação directa a Irún. A terceira prioridade era a ligação de alta velocidade (300/350 quilómetros por hora) para passageiros de Lisboa à região Centro e daí por Cáceres para Madrid, não por Badajoz. Para mim, a razão era clara, ligar os dois maiores centros urbanos da península, Lisboa e Madrid (ficando assim construída metade da ligação de Lisboa ao Porto) e reduzir a dependência do Centro e do Norte relativamente a Lisboa, alargando o mercado da nova linha e, de alguma forma, reforçar a autonomia de Lisboa em relação a Madrid.

A ministra Ana Abrunhosa tem alguma razão em recuperar a estratégia do ex-ministro João Cravinho de reforço do poder político e económico da costa atlântica portuguesa, cujo centro é Lisboa, como a melhor defesa contra a atracção de Madrid. Só que fez uma má digestão de uma boa ideia, para a qual não está, obviamente, preparada.  Como diz o povo, cada macaco no seu galho.

Infelizmente, esta alegoria é extensiva a todo o Governo e em particular ao Primeiro-Ministro. Não existe neste Governo do PS um único pensador com tarimba estratégica e, como escrevi antes, estão dependentes de assessores e conselheiros com interesses divergentes. Trata-se de um problema que só a mudança de Governo resolve.

Nota: O Governo trata sempre os investimentos públicos como despesa e nunca fala do que cada investimento pode acrescentar em receita. Porque será? 

domingo, 27 de dezembro de 2020

Reflexão - LBC (As vacinas na revista Science)

LBC - Oh Lord (in which I don't believe!) why are there still some doubts about vaccines?...

Help them Lord...


The vaccine wars

Debunking myths, owning real risks, and courting doubters.

DATA: CDC

LAST WEEK, PUBLIC HEALTH AUTHORITIES in Minnesota asked more than 200 people to quarantine themselves after 12 cases of measles were diagnosed in less than 2 weeks—all of them in unvaccinated children younger than 6 years. Across the ocean, an unvaccinated 17-year-old Portuguese girl died of measles after the virus invaded her lungs, in the midst of an outbreak there that mirrors surges in cases in Germany, Italy, and Romania.

In 2015, the most recent year for which data are available, just 72% of U.S. toddlers had received seven key vaccines recommended by the Centers for Disease Control and Prevention (CDC), which together protect against 11 potentially deadly diseases. That is actually an improvement from 2011, when the number was 69%; but it also indicates that much work remains to be done, particularly in an environment in which vaccine skeptics have been emboldened, not least by the current occupant of the Oval Office.

As once common diseases of childhood fade from public view, it is understandable that parents' attention would shift from the fear of disease to concerns about risks of the vaccines themselves. The articles in this issue debunk myths old and new about these risks, while acknowledging the real, rare vaccine injuries that do occur. The data on these pages make clear the power of vaccines to vanquish disease—an impact that far eclipses their minute risks. Identifying the best ways to convince hesitant parents of this calculus in an age of internet-fed misinformation is an ongoing challenge for researchers.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Livros - Le sport barbare

Tão antigo e tão actual...

Ou as vicissitudes por que tem, ou teve, de passar esta disciplina para se impôr na nossa sociedade

Mas que dá uma bela discussão, lá isso dá!!











quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Série - Get Shorty S1

 




Entrevista - António Damásio


António Damásio. "As capacidades afetivas são os alicerces da nossa mente"

No seu mais recente livro, Sentir & Saber, explica passo a passo a formação da consciência. E dá exemplos que vão desde as plantas às máquinas que sentem.

António Damásio tem dedicado a sua vida a estudar a anatomia do cérebro e a sua relação com os fenómenos da consciência. A publicação, há 25 anos, de O Erro de Descartes, em que denunciava a sobrevalorização das capacidades cognitivas puras, em detrimento das capacidades afetivas, revolucionou a forma como encaramos a consciência e o conhecimento. Agora, em Sentir &_Saber (ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores), regressa a esse tema, explicando passo a passo a história da vida, desde o aparecimento dos primeiros organismos há quatro mil milhões de anos até aos processos cognitivos complexos que têm lugar no nosso corpo. Conversámos com o neurocientista, galardoado com o Prémio Pessoa (em conjunto com a mulher, Hanna) e com o Prémio Príncipe das Astúrias de Investigação Científica e Técnica, à distância, através do skype.

Ainda é cedo em Los Angeles, são dez e meia da manhã. O seu dia de trabalho começa com algum ritual particular?

Não. Começa quando tem de começar. Às vezes, quando tenho ligações com a Europa, começa às seis ou sete da manhã. E não me deito cedo… Mas depende.

Los Angeles é uma cidade que a maioria de nós associa ao mundo do espetáculo e do prazer, e também à criação artística – mas não tanto ao conhecimento. Isto corresponde à realidade ou é apenas uma ideia feita?

É uma ideia feita, e digo-lhe mais: é uma ideia mal feita. [risos] Los Angeles é uma cidade que tem tudo. É um mundo onde existem talvez as mais notáveis universidades de qualquer parte. Tem três grandes universidades internacionais. Uma é a CalTech, o California Institute of Technology, que está ao nível do MIT. Tem também a University of Southern California, USC, que é a minha universidade e é a mais antiga da Califórnia [fundada em 1880]. E tem a UCLA, que faz parte do grande sistema das universidades da Califórnia. Portanto, pelo contrário, aquilo que é mais característico de Los Angeles são grandes instituições de ciência e de humanidades. É claro que aquilo que domina as notícias são as coisas que têm a ver com Hollywood, e Hollywood também está aqui.

E são mundos separados ou tocam-se?

Separados, mas tocam-se nalguns aspetos. Há tanto a grande tecnologia, como o mundo das artes e o mundo das humanidades. Tudo isso está aqui presente. Por exemplo, os grandes museus. Tem o Getty mas também o LACMA, e variadíssimos outros, museus grandes e pequenos, que têm coleções de arte maravilhosas. São Francisco é mais conhecida, porque é particularmente bonita – não é que Los Angeles seja feio – mas é uma cidade mais pequena que Lisboa, que é uma noção que as pessoas não têm, enquanto Los Angeles é do tamanho de Portugal, tem dez milhões de habitantes.

Gostava que me falasse muito sucintamente sobre as suas aulas. Quem são os seus alunos? São jovens ou investigadores já com um percurso sólido?

Neste momento são praticamente todos investigadores. Eu sou diretor do Brain and Creativity Institute, que é um instituto de investigação científica, e que tem ligado a ele um centro de criação artística com um auditório para música, teatro e cinema. As duas coisas fundem-se. Mas as pessoas que eu treino, que você descreve como os meus alunos…

Se calhar não é a designação mais exata…

São graduate students [doutorandos] ou postdoc. São pessoas que estão já numa carreira científica e que estão a especializar-se em diversos aspetos, seja das neurociências, das ciências cognitivas ou da filosofia. Esse ensino não acontece em salas de aula, no sentido corrente, mas sim em gabinetes de laboratórios, onde geralmente não estão 200 pessoas nem sequer uma centena, mas em grupos de meia dúzia de pessoas. Quando há aquilo a que chamamos laboratory meetings podem estar trinta ou quarenta pessoas, que é a capacidade máxima do laboratório.

E tratam de questões mais técnicas, relacionadas por exemplo com a anatomia do cérebro, ou de questões mais filosóficas?

Tudo. Claro que há o aspeto fundamental que tem a ver com aspetos da neurobiologia, que vão desde descrições neuroanatómicas de estruturas do sistema nervoso a estudos do sistema biológico. E tem também um certo pendor filosófico, porque há pessoas que não estão propriamente a trabalhar em aspetos técnicos da neurobiologia, mas sim em aspetos da reflexão sobre os dados que vamos recolhendo.

Ouvimos falar muito do cérebro, mas o seu livro chama-nos a atenção para o sistema nervoso. Como poderíamos definir o sistema nervoso? É uma espécie de correia de transmissão entre a matéria e as sensações, entre o corpo e a mente?

Para responder à sua pergunta vamos primeiro fazer uma distinção entre sistema nervoso e cérebro. Quando se fala de cérebro estamos a falar de qualquer coisa relativamente bem localizada, aquilo que está dentro da sua caixa craniana e que decorre da caixa craniana em relação ao tronco cerebral e à medula espinal. Isso é aquilo a que se chama cérebro no falar corrente. E tem muito a ver com outra definição técnica, que é o sistema nervoso central. Depois temos todo um outro sistema nervoso – que está ligado a esse, evidentemente – que é o sistema nervoso periférico. E esse é feito de todos os prolongamentos nervosos que saem do sistema nervoso central, são as fibras nervosas que vêm do sistema nervoso central para todas as partes do corpo e vão de toda a periferia de todas as partes do corpo a caminho do sistema nervoso central. Existe portanto uma interligação completa entre o corpo – em todas as suas dimensões, tanto no aspeto exterior como no aspeto interior – e o sistema nervoso central. Essa interligação é feita de duas maneiras: através daquilo a que se pode chamar nervos; e através de moléculas químicas, umas que partem do sistema nervoso a caminho de diversas partes do corpo e outras que estão a estimular o sistema nervoso propriamente dito.

Neste livro descreve a evolução do detetar para o sentir e do sentir para o saber. Até aqui, esta evolução tem sido sempre no sentido de produzir seres cada vez mais ricos, mais completos e complexos. Mas vamos continuar a evoluir indefinidamente ou poderá haver um momento em que este processo se inverte e começa a tender à simplificação?

Essa é uma pergunta interessante mas a que não temos maneira de responder. O que podemos verificar é que, até hoje, se deu uma evolução. Os organismos vivos começaram de uma forma relativamente simples – eu gosto sempre de dizer que é simples mas não é, é simples quando compara com organismos muito complexos como você ou eu, mas já tem uma complexidade extraordinária. Por outras palavras, não é possível ser vivo sem ter uma grande complexidade, mas é aceitável que se fale de organismos (como as bactérias) como organismos simples em comparação connosco. Até hoje tem havido uma complexificação constante, que começa com organismos relativamente simples e unicelulares, e vai até organismos como nós, pluricelulares e extremamente complexos. Mas não temos maneira de saber se continuará a ser sempre assim.

Um fotógrafo da National Geographic com quem falei uma vez dizia-me que até as moscas têm de ser inteligentes para serem tão bem-sucedidas como espécie ao longo de tantos milénios. As moscas são mesmo inteligentes ou é abusivo falar de inteligência neste caso?

Não é abusivo de todo. Neste livro eu falo de competências implícitas e de inteligência implícita. Uma das ideias fundamentais é que quanto mais estudamos a biologia, mais verificamos que há uma capacidade que não se pode descrever de outra maneira que não inteligência. É essa capacidade que permite resolver problemas e ajustar o comportamento de um ser vivo a esses problemas de forma a permitir a continuação da vida. E essa é a definição fundamental de inteligência: você faz um ato inteligente quando esse ato o ajuda a continuar a sua vida, o ajuda a sobreviver e a sobreviver com qualidade de vida. Isso é uma coisa que os seres vivos, desde os simples aos complexos, têm vindo a fazer ao longo da história da vida. Aquilo que acontece é que há seres vivos em que a inteligência é conhecida pelo próprio ser vivo – como nós, que temos a consciência do problema e de o tentar resolver mais ou menos inteligentemente – e há seres vivos à nossa volta que não têm essa capacidade. A maior parte dos seres vivos, tanto na história da vida como os que existem hoje na Terra, não tem essa capacidade de conhecer a sua própria inteligência.

Mas também há situações em que nós próprios podemos perder essa capacidade. Enquanto estava a preparar esta entrevista lembrei-me de um artigo publicado na altura da morte do escritor Gabriel García Marquez. O autor do artigo relatava um último encontro entre o escritor e um outro amigo, à mesa de um café. Na altura, García Márquez, que já estava diminuído e demenciado, disse-lhe assim: ‘Não sei quem tu és, mas sei que gosto muito de ti’. Ele já não conseguia reconhecer aquela pessoa mas ainda tinha ficado lá qualquer coisa.

Tinha ficado lá qualquer coisa que é extremamente importante. Aquilo que você está a descrever é a dissociação entre capacidades puramente cognitivas e capacidades afetivas. A mensagem principal do meu trabalho – e do livro que você aí tem – é a de que as capacidades afetivas têm sido sistematicamente menosprezadas pela nossa cultura, pelo melhor da nossa cultura, não apenas hoje, mas na cultura filosófica tradicional. Mas essas capacidades afetivas são fundamentais em muitos aspetos. São fundamentais porque são as primeiras. Em relação a criaturas como nós são a foundation, os alicerces da nossa mente, daquilo que é o nosso ser. E é sobre essas capacidades que se vão colocar as capacidades cognitivas. Gostava muito do García Márquez mas nunca tinha ouvido essa frase – e acho que é ótima. Aquilo que se estava a passar era que ele estava a olhar para uma pessoa e não conseguia recordar-se em pormenor de quem era essa pessoa. No entanto, a recordação que ele tinha do afeto ligado a essa pessoa mantinha-se. Ou, em alternativa, mesmo que ele não tivesse uma resposta relembrada do afeto que tinha por aquela pessoa, tinha uma reação emotiva a essa pessoa que era positiva. É uma situação extremamente complexa, muito bela. Essa distinção entre o que é cognitivo e o que é afetivo é absolutamente central para compreender a humanidade e é central para o meu trabalho.

Há pouco, quando disse que menosprezamos as capacidades afetivas, pensei no seu livro O Erro de Descartes, e na famosa frase ‘Penso, logo existo’.

Foi o meu primeiro livro não puramente científico mas também com um pendor filosófico. Tem 25 anos. Esse Penso, logo existo é profundamente erróneo, porque vem de uma ideia de que aquilo que é o ser humano e aquilo que é mais valorizável no ser humano é o pensamento, mas um pensamento concebido no nível cognitivo puro, aquilo que tem que ver com os dados objetivos à nossa volta. Neste momento estou a vê-lo no ecrã, estou a olhar para a minha secretária, posso olhar para o exterior através das janelas e ver as colinas de Santa Monica, as montanhas, o Museu Getty, que está aqui ao meu lado. Tudo isso são aspetos que podem ser descritos através da nossa exterocepção, aspetos que podem ser descritos através daquilo que vejo, que ouço, que toco. Mas o fundamental, o alicerce de tudo isto, é aquilo que tem a ver com o nosso próprio corpo, com a vida que está a manifestar-se no nosso próprio corpo, e cujo estado – bom ou mau – é transmitido através do sentimento. Aquilo que é o seu alicerce, e o meu, é o facto de termos vida, e essa vida pode estar a correr bem fisiologicamente ou não. Se você tiver uma gripe, ou covid, tem uma alteração dessa fisiologia e guess what? Vai sentir-se mal. E sentir-se mal é não ter o sentimento de que o corpo está a funcionar dentro dos parâmetros da homeostasia. E esse aspeto fundamental dos seres vivos em geral, desde que tenham sistema nervoso, é constantemente ignorado – a palavra mais justa talvez seja menosprezado. Infelizmente é essa a maneira como grande parte do mundo funciona. O exemplo mais tocante, e chocante, é a maneira como a inteligência artificial tem funcionado. A inteligência artificial é um exemplo claro do que é uma inteligência sem ligação com a vida, sem ligação com o ser humano. O último dos mini-capítulos do livro está baseado num artigo que escrevi há pouco mais de um ano para a Nature, e que é exatamente sobre feeling machines, máquinas que sentem, sobre a ideia de que a inteligência artificial, até hoje, tem pecado por não prestar atenção à realidade da vida. É um aspeto muito curioso, porque até certo ponto é uma forma inteligente, uma forma esperta, de lidar com o problema.

Porquê?

A nossa afetividade é um aspeto fundamental do que nós somos, extremamente valioso, mas ao mesmo tempo torna-nos vulneráveis. Se as coisas nos correrem mal ficamos tristes. E se correrem muito mal podemos ficar não só tristes mas também zangados. Ou deprimidos. Portanto há uma vulnerabilidade que é introduzida pelos sentimentos. Como a vida é vulnerável, o facto de termos sentimentos permite-nos aceder à realidade dessa vulnerabilidade, o que é evidentemente um handicap. Falamos de qualquer coisa que ao mesmo tempo que é extraordinariamente bela e muito inteligente, do ponto de vista de resolução do problema da vida, precisa também de ser manejada muito bem para não nos criar prejuízo.

Mas será mesmo uma fraqueza? A tristeza tem estimulado grandes inteligências e tem estado na origem de grandes criações na arte, na música, na literatura.

Aquilo que é muito bonito aqui é que, dependendo das circunstâncias, essa vulnerabilidade tanto pode ser boa como pode ser má. Pense no grande domínio da literatura, e em particular da poesia. A maior parte dos poetas que nos podem deliciar com o seu trabalho eram pessoas que estavam constantemente muito cientes das suas vulnerabilidades e das suas fraquezas e daquilo que lhes corria mal na vida, e que foram capazes de transformar essas experiências, por exemplo de tristeza, em magníficas obras que nos deleitam. E isso é muito belo: até mesmo um aspeto como a tristeza pode ser gerador de respostas extremamente inteligentes e produtivas. A tristeza pode ser a fonte de uma resposta tão magnífica que pode não só remover a tristeza como levar à produção de qualquer coisa de extraordinariamente bom e rico tanto para nós próprios como para os outros. Portanto devemos agradecer à História que o Shakespeare não fosse durante todo o tempo uma pessoa muito feliz. Ou que o Fernando Pessoa fosse como era. Ou que Emily Dickinson fosse como era. O fundamental é que se perceba que aquilo que é ser humano não é redutível aos aspetos cognitivos da mente. Pelo contrário. É preciso alicerçar essa mente no que é fisiológico, naquilo que é a vida, naquilo que é o corpo. Não é dizer que somos só corpo, isso seria um disparate. O que não se pode é tentar perceber o que é o ser humano sem perceber o corpo, a fisiologia, e a expressão dessa fisiologia nos sentimentos.

Quando pensamos em nós próprios, a primeira coisa que nos ocorre são as memórias. Memórias do que vivemos, do que aprendemos, das pessoas que conhecemos – são elas que fazem de nós quem somos. Até que ponto a memória, esse grande reservatório de imagens e de palavras, se confunde com a identidade, com a consciência e com o ser?

Eu diria que não se confundem.

Mas quando alguém perde a memória é quase como se perdesse a identidade…

Claro. Aquilo que diz respeito aos factos da nossa vida é extremamente importante para a construção da nossa pessoa. Mas mesmo aí essa construção que são as memórias cognitivas está constantemente ligada à maneira como sentimos e ressentimos esses factos. Mas vamos imaginar que temos uma pessoa com uma síndrome demencial grave, em que há uma enorme perda, geralmente no aspeto cognitivo, tal como no caso da pequena história do García Márquez. Aquilo que é a nossa vida, aquilo que é a nossa história e a nossa identidade, não é puramente cognitivo. É cognitivo misturado com o afeto. A vários níveis. Aquilo que lhe aconteceu até hoje, a si, em matéria de factos, foi em grande parte filtrado através daquilo que é o seu afeto. Há certos vários factos que não teriam ocorrido se o seu afeto não fosse como é. Há uma constante mistura desses dois aspetos e pode vincar isto à vontade: aquilo que é fundamental no meu trabalho e no meu pensamento tem a ver com esta mistura do que é afetivo com o que é cognitivo. É por isso que o livro se chama Sentir & Saber.

Falou-me de inteligência artificial. Há dias dei-me conta de que os homens estão cada vez mais a transferir as suas capacidades para dispositivos que lhe são exteriores. Por exemplo, um livro ou um disco rígido fazem o papel de uma memória externa, em que a informação passa a estar ali depositada em vez de a termos dentro de nós. Até que ponto esta tendência para transferir ou delegar certas tarefas em máquinas ou aparelhos pode, a prazo, atrofiar as nossas capacidades? Hoje vemos cada vez mais pessoas que não são capazes de trocar uma lâmpada fundida pois só sabem carregar em teclas e fazer deslizar a ponta dos dedos no ecrã do telemóvel.

Sem dúvida. Há uma enorme redução das nossas capacidades de manejar o mundo que nos circunda. É extremamente complicado e não vejo que nos traga benefícios de qualquer espécie. Vamos assistir, por exemplo, a uma redução do acesso a memórias. As pessoas estão tão habituadas a ter memórias nos seus portáteis que deixam de exercitar a sua. É muito possível que, se você remontasse cem anos, encontrasse pessoas que inconscientemente fizessem exercícios de repetição que poderiam ter lugar durante a noite, em sonhos, o que hoje em dia ninguém vai fazer. Para que é que você precisa de decorar um número de telefone se lhe basta carregar num botão para o encontrar? De certo modo estamos a ficar cada vez mais ineficientes, para não dizer que estamos a ficar mais tontos e parvos. [risos]

Li há dias que já teria nascido a primeira geração com um q.i. médio inferior ao dos pais – e julgo que por culpa da tecnologia. Esta delegação excessiva de competências na tecnologia pode ser um pouco incapacitante?

Sem dúvida.

No epílogo fala-nos, e vou citá-lo, da “poderosa mente humana”, das “extraordinárias capacidades de raciocínio, decisão e criação”. Isto parece-me uma visão muito optimista, uma vez que essas qualidades e capacidades não impedem os homens de agirem de forma irresponsável, estúpida ou mesmo irracional. Por que o fazemos?

Porque é que somos irracionais?

Exato.

Excelente pergunta. Se eu soubesse a resposta resolvia imensos problemas. [risos]

É a nossa herança primitiva a falar mais alto?

Não só. Se nós estivéssemos a conversar num sítio normal, frente-a-frente, ao fim de uma hora eu teria uma certa ideia daquilo que você é e você teria uma ideia de mim, à parte daquilo que você sabe de mim através de livros, artigos de jornal, entrevistas, God knows what. E aquilo que verificaríamos nesse nosso encontro é que até um certo grau somos extremamente parecidos e a partir de um certo grau somos muito diferentes. Como seres humanos somos comparáveis – a mesma idade, o mesmo sexo, o mesmo cultural background, são esses aspetos que nos permitem ter um espaço cultural relativamente semelhante. Mas ao mesmo tempo temos uma individualidade. E é essa mistura que faz com que as pessoas tenham, no geral, uma enorme capacidade criadora, desde a criação artística à criação tecnológica. Temos constantemente demonstrações dessa capacidade, o que não quer dizer que ela esteja distribuída igualmente por todos os seres vivos. É evidente que não está. Há pessoas que são excecionais em capacidades boas e outras que são excecionais em capacidades más. Infelizmente temos exemplos abundantes de pessoas, bem conhecidas do mundo das notícias, que são horrorosas como seres humanos.

Pode dar um exemplo?

Não, não posso. Você tem o exemplo na sua cabeça, não precisa que eu lho dê. [O exemplo que vem à cabeça do entrevistador é Donald Trump.] E portanto há pessoas que são extraordinariamente horríveis em matéria de mentira, em matéria de falsificação da verdade, em matéria de desprezo pelos outros. Mas estas pessoas são, do ponto de vista exterior, iguais a outras que podem estar a criar, por exemplo, uma vacina contra a covid. Temos de fazer justiça a essa complexidade dos seres humanos. E de reconhecer que há grandes capacidades de criação mas ao mesmo tempo há a lamentar – e há que precavermo-nos contra, também – as enormes capacidades de destruição que certos indivíduos têm. Mas nada disto é diferente daquilo que poderia ter sido descrito na Grécia Antiga ou naquilo que está contido magnificamente nas peças de Shakespeare. Ou na Bíblia. Todos estes aspetos humanos estão demonstrados nas peças de Shakespeare. Desde os mais agradáveis aos mais detestáveis. E é possível ser Hamlet [o trágico e indeciso príncipe da Dinamarca, cujo trono é usurpado pelo tio], e é possível ser Macbeth [que ambiciona ser Rei], e é possível ser Lady Macbeth [que intriga e manipula o marido para o levar a cometer o regicídio e tornar-se Rei], e é possível ser one of the marvelous female characters of A Midsummer’s Night Dream [uma das maravilhosas personagens femininas de Sonho de uma Noite de Verão].

Referi a palavra optimismo a propósito das considerações que faz no livro sobre as capacidades da mente humana. Diria que hoje o mundo está muito dividido entre aqueles que veem o apocalipse ao virar da esquina, nomeadamente sob a forma das alterações climáticas, e aqueles que veem a humanidade como uma caminhada em direção a um cada vez maior aperfeiçoamento, como Steven Pinker. Entre estas duas posições – uma mais sombria, a outra mais ‘iluminista’ – onde é que se posiciona?

Mais no lado otimista. De um modo geral sou otimista. E até consigo ser otimista em dias em que tudo corre mal. Consigo ser optimista apesar de este ter sido até agora um ano horribilis. Temos tido desastres climáticos, sem dúvida [o estado da Califórnia, onde António Damásio reside, foi atingido por fogos violentos que mataram 33 pessoas, queimaram mais de 1,7 milhões de hectares e provocaram um prejuízo estimado de dois mil milhões de dólares], desastres de saúde e desastres políticos. Mas ao mesmo tempo também temos coisas boas. Há covid, mas também há um desenvolvimento mais rápido, do ponto de vista histórico, de vacinas – múltiplas vacinas. E neste momento, tanto nos Estados Unidos como em Inglaterra, e espero que em breve também na União Europeia, começam a ser vacinadas as pessoas que estão em maior risco. É uma tristeza que tenha havido a doença, é uma tristeza que tenha havido um mau manejar da doença a princípio. As pessoas, no fundo, nunca acreditaram que isto seria uma coisa grave, e quiseram, conscientemente ou não, ignorar o problema. Mas ao mesmo tempo temos o desenvolvimento das vacinas que é extraordinário. É esta dualidade que está sempre presente.

E encontra mais aspetos positivos?

A primeira versão deste livro foi escrita mais rapidamente do que o habitual porque houve mais tempo. O mais tempo para mim é não viajar. Normalmente viajo imenso. Para este ano tinha agendadas pelo menos nove viagens à Europa – não fiz nenhuma. Isso foi uma tristeza por não poder estar com as pessoas e nos sítios onde gosto de estar, mas foi também uma enorme bênção de tempo que tive e que foi inesperada.

Então tratou-se de um annus horribilis mas não para si…

Yes and no. É um in between [meio-termo]. Consegui escrever o livro mais concentradamente. Quando acabei a primeira versão, e a dei a vários dos meus amigos a quem normalmente peço conselhos sobre aquilo que escrevo, uma coisa que várias pessoas disseram foi: ‘O livro é extremamente pessimista’. E eu reli-o e modifiquei várias coisas exatamente para não ser tão pessimista. Porque no fundo não sou pessimista. Tenho uma enorme dificuldade em ser pessimista durante muito tempo. E tenho uma enorme dificuldade, que julgo estar relacionada com a anterior, em ficar furioso durante muito tempo. Posso ficar irritado… mas depois passa.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Reflexão - José Azevedo

L’État c’est moi – o Estado sou eu» – é uma frase atribuída a Luís XIV, e que terá sido pronunciada pelo monarca diante de parlamentares de França, recordando a autoridade do rei perante a desconfiança expressa por aqueles relativamente a decretos judiciais de março de 1655. Ou seja, e passe o abuso de linguagem, «protestem à vontade, que de nada vos vale, porque quem manda aqui sou eu!».

Não vos lembra nada, esta expressão? Vou então tentar avivar a memória coletiva…

1. Começo por uma situação recente, relacionada com a rejeição, no dia 16 de outubro, dum projeto de resolução no sentido da criação dum portal online de transparência e monitorização do processo de execução dos Fundos Europeus. Como pode aceitar-se que o PS tenha votado contra esse projeto (Bloco, PCP e PEV abstiveram-se, tendo todos os outros partidos votado favoravelmente)? Só por ter sido um projeto proposto pela Iniciativa Liberal? Não se pretende que o ‘exercício’ da atribuição dos ditos fundos seja publicamente escrutinado? Fiquei ainda mais confuso quando li que, uma semana antes, o primeiro-ministro anunciava que «já está a ser trabalhado um portal que permita agregar de forma transparente, clara e em tempo real todo o fluxo relativo aos fundos». Em que é que ficávamos? Haveria portal ou não?

2. Sei bem por que coloco a questão do escrutínio: porque acompanhei de perto, já há muitos, muitos anos, reconheço, múltiplos processos de candidatura a obtenção de financiamento comunitário no âmbito do PEDIP (Programa Específico de Desenvolvimento da Indústria Portuguesa) mas, em especial, a componente de Formação ‘controlada’ pelo IEFP e financiada pelo Fundo Social Europeu; e porque, em resultado desse acompanhamento, tive a perceção clara da dificuldade e morosidade de aprovação de alguns dossiers de investimento privado, contrastando com maior ‘abertura de critérios’ quando se tratava de investimento público… Mudam-se os tempos mas pelos vistos não se mudam as vontades…

3. Ainda o processo de nomeação da representante portuguesa para a Procuradoria Europeia. Por que raio de razão, depois de realizado um concurso internacional que Ana Carla Almeida venceu (concurso esse cujo júri havia sido nomeado pela Comissão Europeia) foi indicado o candidato que ficou em segundo lugar? Seria porque da intervenção da magistrada no ‘processo das golas’ se viria a demitir um membro do Governo? Ou (e) porque das funções da já referida Procuradoria consta a investigação criminal em áreas em que estejam em causa os interesses financeiros da União Europeia e houvesse em Portugal alguém mais ‘conveniente’ para o cargo?

4. Agora a presidência do Tribunal de Contas, desta vez com a conivência de Sua Excelência o Presidente da República. A Constituição determina mandato único para essa função, dizia. Se sim, por que motivo não foi aplicada essa regra durante 23 anos? Não se entende…

5. Mesmo sabendo que estamos a viver a pior crise de saúde pública a que assisti em Portugal, com que direito se chegou a pensar em estipular a utilização compulsiva da aplicação Stayaway COVID? Mesmo sabendo que em 2019 foram gastos 890 milhões de euro em 2,5 milhões de smartphones (e que por cada 100 habitantes há 171 telemóveis registados, embora apenas 120,9 com utilização efetiva), como se poderia obrigar que quem tenha esse tipo de modelos passasse a utilizar a aplicação? Não se trataria de atentar contra a liberdade individual? Caso se cumpram as regras mais faladas para prevenção da doença – lavagem frequente das mãos, utilização de máscara, distanciamento social – seria mesmo necessário (e aceitável) forçar os portugueses a utilizá-la? Já se sabe, quando se obriga, o resultado final pode ser justamente o oposto do desejado… Mesmo não obrigando – como acabou por suceder – os números demonstram o insucesso total da aplicação, não é verdade?

6. Por último, mas não menos relevante: vivemos confinados, em estado de emergência, proíbem-nos deslocações entre concelhos, recolhemos obrigatoriamente a partir das 23h, determinamos o encerramento do comércio a partir das 15H (neste fim de semana alargado e no próximo) e permite-se a realização do Congresso do PCP?

Em suma, ‘o Estado sou eu’, nas suas distintas representações…

PS: acabo de saber que, por via duma alteração à Proposta de Orçamento, foi aprovada a criação do Portal da transparência a que acima aludi. Desta vez, 12 votos de abstenção do PCP e PEV, 108 votos contra do PS e 110 a favor, dos restantes partidos. Fez-se justiça!

domingo, 6 de dezembro de 2020

sábado, 5 de dezembro de 2020

Reflexão - Gonçalo Portocarrero

O não-caso do coitadinho que interrompeu uma coisa

Dantes, a ominosa censura impedia os jornalistas de dizer a verdade, mas agora os censores são os jornalistas politicamente correctos: passaram de vítimas a carrascos da liberdade de informação.

05 dez 2020, 00:06

 

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O episódio é recente e descreve-se em poucas palavras. Numa celebração eucarística, na igreja da Sagrada Família, no Entroncamento, no passado dia 15 de Novembro, um homem com um gorro na cabeça, avançou para a estante das leituras, afastou o leigo que aí se encontrava e dirigiu-se aos fiéis. O celebrante, que estava sentado na sede, alguns metros atrás do altar, ao aperceber-se da abusiva intromissão, levantou-se e foi ter com o sujeito, a quem educadamente admoestou, o qual lhe respondeu, por duas vezes, “Cala a boca!”, levantando o braço, embora sem o agredir fisicamente.

 

Enquanto o celebrante se retirou para a sacristia, onde desligou a aparelhagem de som, o intruso disse: “Têm de sair de África, têm de deixar a gente resolver … a nossa África. Não queremos Cristianismo, nem religião nenhuma, nada em África …”. Depois, abandonou pacificamente o altar e a igreja, permanecendo no seu exterior.

O facto, por ser insólito, merecia alguma referência nos meios de comunicação social de âmbito nacional, porque não é todos os dias que as celebrações eucarísticas são desrespeitadas no nosso país. A mera interrupção teria sido banal, porque acontece com alguma frequência, quase sempre devido à extemporânea intervenção de alguma pessoa desequilibrada que, obviamente, não justifica destaque informativo e que, mais do que censura, merece compaixão. Mas não era o caso, dado o discurso político e antirreligioso do espontâneo interveniente.

É curioso que o “indivíduo de ascendência africana”, assim identificado pelo jornal Mais Ribatejo, seja a favor de uma África sem europeus, sendo ele, pelos vistos, um imigrante num país estrangeiro. Que sentido faz ser, num país estrangeiro, contra os estrangeiros no seu próprio país?! Ou que têm a ver os católicos do Entroncamento com a presença estrangeira em África?! Por outro lado, se há alguns missionários portugueses nesse continente, há cada vez mais, graças a Deus, padres de origem africana em Portugal. A reação dos fiéis a esta nova realidade é de agradecimento pelo excelente trabalho pastoral realizado, no nosso país, pelos sacerdotes oriundos de África, apesar de, a julgar pela intervenção do dito sujeito, sermos nós os colonialistas e racistas …

 

 

Na medida em que se tratou de um acontecimento inédito, fazia sentido que tivesse sido devidamente noticiado, com os esclarecimentos que a questão exigia, até para evitar juízos temerários. Tendo em conta os atentados contra a Igreja católica, em França, em que padres e fiéis leigos têm sido assassinados, o facto ocorrido no Entroncamento tem uma acrescida relevância e oportunidade. Na realidade, é uma séria advertência para os católicos portugueses, que não estão isentos da perseguição que sofrem os seus irmãos na fé, em França e não só.

Contudo, quase todos os meios de comunicação social nacionais, com excepção da imprensa regional, optaram pelo silêncio. Porquê? Decerto porque temeram que essa notícia pudesse ser aproveitada para finalidades racistas, ou xenófobas. O receio é decerto louvável, mas não justifica a censura, porque há um direito fundamental à informação e à verdade. Até porque, se a comunicação social discrimina as notícias em função da raça, não é ela própria que está a ser, afinal, racista?!

 

Mas, seria razoável que, ao noticiar este incidente, se referisse a origem da pessoa em questão? Claro que sim, porque a menção é necessária para explicar o conteúdo da intervenção, sem que daí se possa retirar nenhuma ilação racista. A referência à etnia, ou nacionalidade, faz sentido quando não são as que seriam de esperar: ser português em Portugal não é notícia, nem africano em África, mas sim o contrário. É esta, aliás, a prática comum: no caso Maddie McCann, por exemplo, consta um suspeito alemão, sem que essa referência se possa entender como antigermânica. O que seria discriminatório seria, pelo contrário, ocultar a etnia, ou a nacionalidade, do protagonista, sempre que não seja branco.

Nas redes sociais – que felizmente suprem a censura que alguns meios de comunicação social querem impor – a notícia foi viral. Mas, como também acontece com frequência nessas redes, houve quem erradamente supusesse que o dito sujeito era muçulmano. É verdade que, ao dizer “a nossa África”, se identificou como africano mas, ao dizer que não quer nenhuma religião na sua terra, também excluiu, como é lógico, a crença islâmica. Também por este motivo, impunha-se que os media de referência nacional tivessem rectificado essa preconceituosa informação. Ao não fazê-lo, foram coniventes, por omissão, com essa falsidade, que ofende os maometanos.

Mas, pergunta-se ainda: deve-se referir a religião do protagonista de um acontecimento desta natureza? É irrelevante a religião de um carteirista que rouba no eléctrico nº 28, mas se um terrorista entra numa igreja, aos gritos de “Alá é grande” e mata cristãos, não faz sentido ignorar a motivação religiosa do atentado. Mas nenhuma religião pode ser julgada pelos crimes de um seu fiel, ou ministro, quando age sem o consentimento, nem o conhecimento dos seus superiores religiosos. Sempre que a religião é determinante de um acto socialmente relevante, é óbvio que deve ser referida.

 

A comunicação social, que é madrasta para os católicos, sobretudo se são padres, é mãe e madrinha dos fiéis das outras religiões, cujos desaires silencia, ou justifica. Foi o que também agora aconteceu em relação a umas incríveis declarações de Mamadou Ba, que se tornaram virais nas redes sociais e que os media politicamente correctos ignoraram ou, pior ainda, justificaram.

A escassa imprensa que se referiu ao protagonista do incidente do Entroncamento, talvez para não ser acusada de racista, também se apressou a justificar o intruso, dizendo que estava bêbado. Consta que foi o próprio que, questionado pela polícia, disse, em sua defesa, que estava embriagado, mas as imagens que o mostram a deslocar-se com passo firme, bem como a proferir, com voz escorreita, a sua despropositada alocução, parecem desmentir essa suposição.

À comunicação social não compete julgar, nem condenar ninguém. Não se espera dos jornalistas um veredicto, até porque, em geral, não têm conhecimentos, nem idoneidade, que lhes permitam chegar a uma conclusão sobre a responsabilidade dos sujeitos cujas acções reportam. Que se lhes pede, então? Que informem, sem preconceitos nem enviesamentos ideológicos ou religiosos. E que deixem o juízo, seja ele de absolvição ou de condenação, para quem de direito. Não é razoável que os jornalistas silenciem os factos que contrariam as suas convicções políticas e religiosas, omitindo informação relevante para o público em geral.

Há uns anos atrás, o facto agora ocorrido teria sido noticiado mais ou menos nestes termos: ‘Indivíduo de origem africana interrompe celebração da Missa, injuria o celebrante e exige a saída dos europeus e das religiões do seu continente’.  Mas, segundo os cânones do politicamente correcto, hoje, ou se silencia o facto, ou se tem de dizer alguma coisa do género: “Coitadinho interrompeu uma coisa. Com efeito, não se pode ofender nenhuma etnia, nem os africanos, nem as pessoas de qualquer religião (com excepção da católica, que se pode insultar à vontade porque, neste caso, é sempre uma salutar manifestação de liberdade de expressão). Também não se pode dizer que a Igreja católica foi vítima de um desacato, porque nunca pode ser louvada, nem tida por ofendida, já que é a eterna culpada das horríveis Cruzadas, da ignominiosa Inquisição, da morte na fogueira de Galileu (que, por sinal, morreu de morte natural, em sua casa e cama), etc.

Lembram-se do tempo em que a comunicação social informava?! Pois então esqueçam, porque agora os media do regime, pagos com principescas subvenções, já não servem para informar, mas para educar os cidadãos, segundo a cartilha do politicamente correcto. Dantes, a ominosa censura impedia os jornalistas de dizer a verdade, mas actualmente são os jornalistas politicamente correctos que são os censores: passaram de vítimas a carrascos da liberdade de informação. E os leitores que, durante o antigo regime, foram vítimas da censura aos órgãos de informação, são agora as vítimas destes novos censores.