Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho a certeza absoluta. (Einstein) But the tune ends too soon for us all (Ian Anderson)
domingo, 28 de fevereiro de 2021
Reflexão - Alfredo Quintana
“Vou cuidar dos teus amores, nada lhes faltará”: “Kingtana” já tem um mural no Dragão, Iturriza e Salina receberam camisola em...
Alfredo Quintana partiu, Alfredo Quintana continua a ser recordado. Este sábado, a zona circundante do Dragão Arena passou a ter uma imagem pintada do guarda-redes luso-cubano e as homenagens continuam a suceder-se, com dezenas de adeptos a passarem pelo local onde foi feita na última noite uma vigília em memória do antigo jogador dos dragões e que tem cada vez mais velas, cartolinas, cachecóis azuis e brancos e demais mensagens que acompanham uma coroa de flores que tinha sido deixada na véspera. Ao mesmo tempo, logo ali ao lado, na porta 1 do recinto, foi também colocada uma tarja de fundo azul com a inscrição “Kingtana”.
O ambiente é de consternação, como ficou bem patente no arranque do encontro de hóquei em patins entre o FC Porto e o Sporting, um clássico antes do jogo grande do futebol à noite e onde foram feitas várias homenagens ao guarda-redes, que contaram também com os companheiros de andebol Victor Iturriza e Daymaro Salina, que receberam em lágrimas uma camisola com o número 1 da equipa de hóquei em patins do Sporting. E mais logo está a ser preparada mais um grande momento a recordar o internacional falecido esta sexta-feira, com todo o topo Sul com cartolinas brancas com a inscrição “Quintana 1”, como acontece já no Dragão Arena.
As mensagens, essas, continuam a chegar. E André Villas-Boas, treinador que deixou recentemente o Marselha e que é um assumido associado dos dragões, a recordar a história de como Quintana se tornou guarda-redes.
“Partilho com vocês uma história contada pelo meu adjunto Pedro Silva, seu professor na FADEUP. Uma vez no fim de uma aula ficamos sentados a conversar no sintético da faculdade. Contou-me como chegou a guarda redes. Um dia, quando ainda estava em Havana, foram jogar fora contra alguém e o guarda-redes faltou. Ele, que jogava à frente foi para a baliza, e assim nasceu a lenda. ‘Foi a melhor coisa que me aconteceu Prof’ – disse-me! Uns anos mais tarde foi descoberto pelo FC Porto num torneio no Chile. Veio para Portugal e começou a jogar no Porto. Foi campeão e amava a cidade e o clube. Casou com uma portuguesa e teve uma filha. Não queria sair do Porto! Era um dragão! Se não tivesse ido para a baliza naquele dia, talvez tivesse sido apenas mais um menino nas ruas de Havana, talvez ainda entre nós, mas sem nunca ter vivido o sonho que estava a viver quando o conheci! Descansa em paz querido Alfredo Quintana. Os meus mais sentidos pêsames a toda a sua família”, escreveu.
Na véspera, e entre as dezenas e dezenas de mensagens que foram sendo partilhadas, a de Victor Iturriza, luso-cubano também internacional que era uma das pessoas mais chegadas a Alfredo Quintana, ganhou um peso reforçado pela emoção que acabou por traduzir o sentimento no balneário da equipa de andebol dos dragões.
“Não consigo colocar em palavras aquilo que sinto neste momento, tampouco tudo o que representaste para mim. Como se despede de um irmão? De um companheiro de lutas? De um amigo de todas as horas? A vida fará muito menos sentido sem ti para partilhá-la, mas podes ter a certeza que cá continuaremos a honrar a tua memória. Viverás para sempre em cada um que teve o privilégio de te ter nas suas vidas. Tenho a certeza que estarás para sempre a olhar por nós e a ser o nosso anjo da guarda. Não me esqueci da promessa que te fiz. Estejas onde estiveres, eu vou cuidar dos teus amores. Enquanto aqui estiver nada lhes faltará, meu irmão!”, destacou.
sábado, 27 de fevereiro de 2021
Reflexão - António Barreto
António Barreto
"Republicanos, corporativistas, fascistas, comunistas e até democratas mostraram, nos últimos séculos, que se dedicaram com interesse à revisão seletiva da História, assim como à censura e à manipulação.
É triste confessar, mas ainda estamos para ver até onde vão os revisores da História. Uma coisa é certa: com a ajuda dos movimentos antirracistas, a colaboração de esquerdistas, a covardia de tanta gente de bem e o metabolismo habitual dos reacionários, o movimento de correção da História veio para ficar.
Serão anos de destruição de símbolos, de substituição de heróis, de censura de livros e de demolição de esculturas. Até de retificação de monumentos. Além da revisão de programas escolares e da reescrita de manuais.
Tudo, com a consequente censura de livros considerados impróprios, seguida da substituição por novos livros estimados científicos, objetivos, democráticos e igualitários. A pujança deste movimento através do mundo é tal que nada conseguirá temperar os ânimos triunfadores dos novos censores, transformados em juízes da moral e árbitros da História.
Serão criadas comissões de correção, com a missão de rever os manuais de História (e outras disciplinas sensíveis como o Português, a Literatura, a Geografia, o Meio Ambiente, as Relações Internacionais…), a fim de expurgar a visão bondosa do colonialismo, as interpretações glorificadoras dos descobrimentos e os símbolos de domínio branco, cristão, europeu e capitalista.
Comissões purificadoras procederão ao inventário das ruas e locais que devem mudar de nome, porque glorificam o papel dos colonialistas e dos traficantes de escravos. Farão ainda o levantamento das obras de arte públicas que prestam homenagem à política imperialista, assim como aos seus agentes. Já começou, aliás, com a substituição do Museu dos Descobrimentos pelo Memorial da Escravatura.
Teremos autoridades que tudo farão para retirar os objetos antes que as hordas cheguem e será o máximo de coragem de que serão capazes. Alguns concordarão com o seu depósito em pavilhões de sucata. Outros ainda deixarão destruir, gesto que incluirão na pasta de problemas resolvidos.
Entretanto, os Centros Comerciais Colombo e Vasco da Gama esperam pela hora fatal da mudança de nome. Praças, ruas e avenidas das Descobertas, dos Descobrimentos e dos Navegantes, que abundam em Portugal, serão brevemente mudadas.Preparemo-nos, pois, para remover monumentos com Albuquerque, Gama, Dias, Cão, Cabral, Magalhães e outros, além de, evidentemente, o Infante D. Henrique, o primeiro a passar no cadafalso. Luís de Camões e Fernando Pessoa terão o devido óbito. Os que cantaram os feitos dos exploradores e dos negreiros são tão perniciosos quanto os próprios. Talvez até mais, pois forjaram a identidade e deram sentido aos mitos da nação valente e imortal.
Esperemos para liquidar a toponímia que aluda a Serpa Pinto, Ivens, Capelo e Mouzinho, heróis entre os mais recentes facínoras. Sem esquecer, seguramente, uns notáveis heróis do colonialismo, Kaúlza de Arriaga, Costa Gomes, António de Spínola, Rosa Coutinho, Otelo Saraiva de Carvalho, Mário Tomé e Vasco Lourenço.
Não serão esquecidos os cineastas, compositores, pintores, escultores, escritores e arquitetos que, nas suas obras, elogiaram os colonialistas, cúmplices da escravatura, do genocídio e do racismo. Filmes e livros serão retirados do mercado.
Pinturas murais, azulejos, esculturas, baixos-relevos, frescos e painéis de todas as espécies serão destruídos ou cobertos de cal e ácido. Outras comissões terão o encargo de proceder ao levantamento das obras de arte e do património com origem na África, na Ásia e na América Latina e que se encontram em Portugal, em mãos privadas ou em instituições públicas, a fim de as remeter prontamente aos países donde são provenientes.
Os principais monumentos eretos em homenagem à expansão, a começar pelos Jerónimos e pela Torre de Belém, serão restaurados com o cuidado de lhes retirar os elementos de identidade colonialista. Os memoriais de homenagem aos mortos em guerras do Ultramar serão reconstruídos a fim de serem transformados em edifícios de denúncia do racismo. Não há liberdade nem igualdade enquanto estes símbolos sobreviverem.
Muitos pensam que a História é feita de progresso e desenvolvimento. De crescimento e melhoramento. Esperam que se caminhe do preconceito para o rigor. Do mito para o facto. Da submissão para a liberdade.
Infelizmente, tal não é verdade. Não é sempre verdade. Republicanos, corporativistas, fascistas, comunistas e até democratas mostraram, nos últimos séculos, que se dedicaram com interesse à revisão seletiva da História, assim como à censura e à manipulação.
E, se quisermos ir mais longe no tempo, não faltam exemplos. Quando os revolucionários franceses rebatizaram a Catedral de Estrasburgo, passando a designá-la por Templo da Razão, não estavam a aumentar o grau de racionalidade das sociedades. Quando o altar-mor de Notre Dame foi chamado de Altar da Liberdade caminharam alegremente da superstição para o preconceito.
E quando os bolchevistas ocuparam a Catedral de Kazab, em São Petersburgo e apelidaram o edifício de Museu das Religiões e do Ateísmo, não procuravam certamente a liberdade e o pluralismo. E também podemos convocar os Iconoclastas de Istambul, os Daesh de Palmira ou os Taliban de Bamiyan que destruíram símbolos, combateram a religião e tentaram apropriar-se tanto do presente como do passado.
Os senhores do seu tempo, monarcas, generais, bispos, políticos, capitalistas, deputados e sindicalistas gostam de marcar a sociedade, romper com o passado e afastar fantasmas. Deuses e comendadores, santos e revolucionários, habitam os seus pesadelos. Quem quer exercer o poder sobre o presente tem de destruir o passado.
Muitos de nós pensávamos, há cinquenta anos, que era necessário rever os manuais, repensar os mitos, submeter as crenças à prova do estudo, lutar contra a proclamação autoritária e defender com todas as forças o debate livre.
É possível que, a muitos, tenha ocorrido que faltava substituir uma ortodoxia dogmática por outra. Mas, para outros, o espírito era o de confronto de ideias, de debate permanente e de submissão à crítica pública.
O que hoje se receia é a nova dogmática feita de novos preconceitos. Não tenhamos ilusões.
Se as democracias não souberem resistir a esta espécie de vaga que se denomina libertadora e igualitária, mergulharão rapidamente em novas eras obscurantistas."
Reflexão - Maria de Fátima Bonifácio
M. FÁTIMA BONIFÁCIO (historiadora, no Público)
Não vou comentar as barbaridades e alarvidades declamadas por Ascenso Simões em recente entrevista ao Observador, aliás já amplamente criticadas e repudiadas na imprensa. Quero apenas denunciar a granítica ignorância da História que o sr. deputado exibiu. “Falta o conhecimento da história. Falta perceber verdadeiramente que não tivemos império nenhum”, lamenta o sr. Ascenso, logo ele, a quem esse conhecimento da história falta por completo.
Durante as décadas de 1870 e 1880, a sociedade urbana, sobretudo em Lisboa e no Porto (em menor medida), transformou-se profundamente. Em 1876 fundou-se o Partido Republicano Português (PRP); a Sociedade de Geografia nasceu em 1875 e em 1877 partiam para a África Austral Roberto Ivens, Serpa Pinto e Brito Capelo. Deu-se uma “euforia colonial”, uma espécie de descoberta da nossa vocação africana, uma dimensão geminada com o vetusto tronco da portugalidade, que nessa década de 70 ateou um nacionalismo nunca visto em Portugal. Na década de 70, pode dizer-se, até nos meios populares se descobriu o destino africano de Portugal.
Atirando mais achas para a fogueira, o PRP decidiu comemorar o centenário de Camões (8.6.1880) com a máxima pompa e com o cuidado de atrair o máximo de povo possível. Camões, “a mais genuína expressão do génio português” no apogeu da sua viril criatividade, seria o grande factor da unidade nacional, a ideia e o símbolo mesmos da pátria. A manifestação de 8 de Junho foi um sucesso, e de entre os milhares e milhares de pessoas que participaram sobressaía agora o elemento popular — o povo.
Seguiram-se então outras e variadas celebrações cívicas, não apenas em Lisboa e no Porto mas também em remotas terras de província. A partir de 1880, com a entrada em cena do PRP e a chegada da plebe ao palco político, a política portuguesa mudou. Essa política tinha agora de acomodar massas urbanas insubmissas.
Estabeleceu-se em Portugal um clima de exaltação patriótica inicialmente criado pelas comemorações camonianas.
O centenário da morte do genial marquês de Pombal, o herói que expulsara os jesuítas, serviu para acirrar o anticlericalismo radical, outro factor não despiciendo de aglutinação das hostes radicais. Outras associações e agremiações se criaram.
O que interessa reter, para compreender como sequentemente o colonialismo e o imperialismo se tornaram indiscutíveis, é a extrema exacerbação do patriotismo apoiado sobre dois grandes pilares que eram Camões, o genial épico que narrou em 8816 versos decassilábicos a grandiosa saga portuguesa dos Descobrimentos, e a elevação de Portugal a cabeça de um império luso-africano. O Império e as colónias tornaram-se incriticáveis. Isto já na década de 1880.
O Império não foi nenhuma invenção salazarista e vê-lo tratado como tal dá vontade de rir. Sem o contexto de mobilização patriótica desenvolvido na década de oitenta do século XIX, as reacções ao ultimato inglês de Janeiro de 1890 seriam inimagináveis. A notícia de que Portugal vergara a cerviz varreu Lisboa como um relâmpago e foi explorada tanto por monárquicos como por republicanos. Na noite de 11 de Janeiro de 1890, as praças, as ruas e os cafés da Baixa encheram-se instantaneamente. No dia 12, a ira popular apedrejou as janelas da embaixada britânica em Lisboa: Angola e Moçambique eram nossas!
Depois de muitas e muitas peripécias, gradualmente o fogo patriótico foi-se extinguindo. Mas, com o Ultimato de 1890, ficou estabelecido o monopólio republicano do patriotismo.
A monarquia constitucional, que uma década de rituais e comunhões cívicas divorciara do povo urbano, sobreviveu às sequelas do ultimato mais isolada do que em qualquer anterior momento da sua existência.
Outro resultado do ultimato foi a definitiva “sacralização do império” (Valentim Alexandre & J. Dias). Na precisa altura em que o domínio colonial se tornava “intangível” (V. Alexandre & J. Dias), a monarquia revelara-se incapaz de o preservar. Na imaginação da massa urbana politizada, que muita prosa de escritores públicos aliás confirmava, cristalizou a ideia de que “os Braganças” e a estrita oligarquia que os rodeava eram “um corpo estranho no corpo da nação” (V.P.V.). Todo o establishment — incluindo o rei — se viu ameaçado por causa da perda de uma parcela de terra africana que bem ou mal julgávamos nossa
A República herdou o Império. Cuidou dele o que pôde, que não era muito porque nós éramos pobres. (Em 1874, Fontes Pereira de Melo teve margem para investir umas poucas centenas de contos em Angola.) Durante a I Guerra Mundial, a República enviou para África 39.000 soldados que sofreram, às mãos dos alemães, derrotas após derrotas. Norton de Matos, quando governador na década de 1920, aumentou muito significativamente a verba do orçamento destinada à escolarização. Mas já era de há muito mais do que evidente que não tínhamos meios para nos arvorarmos em potência colonizadora. Salazar não inventou nada, administrou uma herança. Na realidade, herdou o Império, mas designou-o como as “nossas províncias ultramarinas”, para sublinhar a sua pertença congénita a Portugal. Onde está a invenção?
Mas o sr. deputado Ascenso Simões é de opinião — contra toda a evidência factual — “que esse império que está na nossa cabeça é o império salazarista. É uma construção simbólica do império salazarista”. Alguém percebe esta frase?
Termino lembrando um pormenor: tivemos, de facto, um império — o império luso-brasileiro. Durou uns séculos. Não me parece que deva ser atirado para uma nota de pé de página da história. Ou terá sido também o Brasil “uma construção simbólica do império salazarista”?
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021
domingo, 21 de fevereiro de 2021
Reflexões - Várias
(Paulo Tunhas no Observador)
...
Sabem que são boas pessoas se se opuserem ao racismo. Pensam ser boas pessoas porque se opõem à destruição do ambiente. Querem ter a boa «atitude», e essa é a razão pela qual os que não têm a boa atitude são expulsos das universidades ou do seu trabalho por razões insignificantes. Antes, era-se excluído da Igreja, hoje é-se excluído da vida pública”. Face a isto, face à ameaça da intensificação a níveis nunca vistos de algo que já ocupa uma boa parte do nosso quotidiano, face a esse maniqueísmo que generalizadamente tomou conta dos espíritos, não vejo como não preferir uma posição como a de Trump, que finalmente representa sobretudo a barreira possível contra a verdadeira loucura que ameaça tomar conta de tudo...
(Rui Ramos no Observador)
...É possível uma democracia com uma sociedade fraca e dependente do Estado, e um Estado dependente de ajudas externas, ou por outra palavras: é possível uma democracia sem verdadeira autonomia dos cidadãos e da sua comunidade política? É possível uma democracia com um Estado ocupado há um quarto de século por um mesmo grupo partidário, sem perspectivas de alternância, a não ser em caso de catástrofe? É possível uma democracia onde o poder é sustentado por partidários confessos de ditaduras? É possível uma democracia com instituições minadas por suspeitas de amiguismo e de corrupção? É possível uma democracia onde décadas de estagnação económica e de constrangimentos financeiros tiraram qualquer relevância a propostas de governo alternativas? É possível uma democracia onde, por tudo isto que ficou dito, mais de 50% dos eleitores já não parecem acreditar que valha a pena votar? É possível uma democracia onde, com esse nível de abstenção, o governo pode perpetuar-se confiando apenas no voto fiel da minoria de clientes e beneficiários do poder, como nos regimes não democráticos do passado português?
(Alberto Gonçalves no Observador)
Também pensei em escrever sobre a luta do Ministro dos Transportes para manter a TAP nas mãos dos portugueses. Mas uma simples crónica não seria agradecimento bastante pelos esforços do fulano, que prometeu dividir por todos nós os lucros da companhia, no dia, lá para 2860, em que a TAP os der. Os invejosos, e anti-patriotas, criticam o dinheiro que a TAP custa aos contribuintes e ignoram o dinheiro que lhes poupa: só esta semana, a TAP adiou a compra de 15 aviões e poupou 800 milhões. Para a semana, adia-se a compra de 30 e embolsam-se 1.600.000.000€. De uma empresa assim vale a pena ser accionista.
Por fim, quase escrevi sobre o advento da “linguagem inclusiva” às Forças Armadas. Mas um momento histórico merece celebrações e não textos. Se há coisa de que a tropa necessita é de moderação na linguagem. Os leigos é que não sabem das indecências que se passam lá dentro: há documentos militares que, sob a assinatura, legendam “o requerente”, em lugar de “o/a requerente/o/a”. E, pelos vistos, há instrutores malformados que berram: “Porta-te como um homem!”, em lugar de “Porta-te como homem, mulher, género fluido ou o que te aprouver, se não for incómodo, sim?”
Reflexão - Henrique Neto
E o melhor de tudo são as crianças
A semana passada António Barreto publicou no ‘Público’ um lúcido artigo sobre os perigos de o Portugal político ficar dividido em duas metades irreconciliáveis, uma de esquerda e outra de direita, ambas com as suas próprias soluções, essencialmente movidas pela ideologia e pelos interesses partidários, mais do que pela racionalidade.
Na raiz deste problema, penso, existe a má qualidade da formação e da informação que temos, que convive com a tendenciosa e irracional actividade partidária, que se tornou um enorme jogo de enganos, a que a corrupção e os interesses económicos não são alheios. Uma comunicação social em dificuldade económica, com muitos programas de televisão medíocres, onde tudo pode ser dito de forma acrítica, sem contraditório minimamente inteligente e racional. Existe na sociedade portuguesa a ausência daquilo a que tenho chamado, com frequência, a procura da verdade, verdade racionalmente demonstrável, a que sobrevive ao tempo.
Ultimamente tenho participado pela Net em várias conferências e debates onde os participantes têm uma feroz necessidade de falar muito e sobre todos os problemas que afectam a humanidade, também em Portugal, onde, como sabemos, os problemas são muitos. António Costa Silva fez escola entre nós com a seu imenso catálogo de ideias e de propostas, onde se perde a simples noção da escolha, de definição de uma estratégia, de encontrar algum sentido de direcção para o País.
Dizem-me que isso se deve em grande parte às redes sociais. Talvez, mas pessoalmente fico mais impressionado com muitos programas de televisão, alguns que já levam muitos anos, como o agora Circulatura do Quadrado, e outro, o Eixo do Mal, que acaba de fazer dezasseis anos de vida. São programas, entre outros, que independentemente da qualidade das pessoas que neles participam, que não discuto, não representam a diversidade do pensamento nacional e falam de tudo numa cacofonia insuportável. A Circulatura do Quadrado, que era suposto ser um programa independente e representar a diversidade dos diferentes partidos políticos, deixou de se dar por isso, para, com pequenas nuances, agradar ao poder político em excercício. Porque tanto Jorge Coelho antes, como Catarina Mendes agora, têm dominado o programa. A semana passada, Pacheco Pereira arriscou, quase no final, falar de corrupção, nomeadamente no PS, mas localizando essa acusação em José Sócrates, evitando falar da corrupção de hoje, quando tanto haveria a dizer. António Lobo Xavier parece perdido entre o seu CDS, o Presidente da República e a vontade de coexistir com Catarina Mendes, sendo esta o papagaio falante ao serviço do Governo.
Quanto ao Eixo do Mal, ainda não percebi se é um programa de entretinimento ou de debate. Em qualquer caso, não é para levar a sério. Por entre as muitas risadas que sugerem um programa para rir e grandes tiradas filosóficas a mostrar cultura, cultiva uma certa auto-suficiência nas opiniões, entre todos semelhantes e que, de tanto repetidas, enfadam. No campo das ideias e do pensamento organizado e livre ainda não vi nada, mas aceito que a culpa possa ser minha.
O futebol, com a sua imensa capacidade de activar paixões, presente em todos os canais e a todas as horas, agora dividindo o tempo com a pandemia, são factores que acentuam a irracionalidade da nossa vida em sociedade. Outra razão para a ausência de método, de disciplina e de ciência no debate nacional, deve-se ao estranho silêncio da Universidade Portuguesa, mesmo quando no caso da pandemia, da moda do hidrogénio e dos investimentos públicos, se trata de temas que enchem os jornais e as televisões e são ali tratados, principalmente, por curiosos falantes.
O resultado de toda esta diarreia discursiva é a inexistência de ideias organizadas quanto ao futuro do País. O que existe é confusão, uma infinidade de opiniões sobre tudo o que mexe, mas que, quando se chega, finalmente, a procurar soluções racionalmente viáveis, zero. Esta é uma forma de não debate, de incapacidade de fazer sínteses e da propensão para falar de mais e pensar de menos, o que parece dominar a nossa vida colectiva. O que não admira, dada a longevidade e a permanência dos mesmos na comunicação social e o amiguismo que reina em grande parte da sociedade portuguesa. Há, naturalmente, excepções, como algum jornalismo de investigação que, a propósito, está a ser atacado por dentro e por fora, como temos excelentes cronistas que, infelizmente, são pouco lidos. António Barreto e João Miguel Tavares são os meus favoritos, como Mira Amaral nas questões económicas, porque são dos poucos que denodadamente procuram a verdade no meio da cacofonia dominante.
Existem ainda pequenos grupos temáticos que produzem manifestos, que defendem a reforma das leis eleitorais, a mudança da política energética e a ferrovia com ligação à Europa. Outros lutam por uma economia de concorrência, defendem a indústria e o investimento estrategicamente relevante, nomeadamente estrangeiro. Outros ainda, como eu próprio, defendem a ideia da necessidade de um programa de creches e de escolas do pré-primário de elevada qualidade e com transporte, que garanta a igualdade de formação das crianças à entrada do ensino oficial aos sete anos que é, pensamos, a chave da mudança, a oportunidade para reduzir a desigualdade na sociedade portuguesa numa geração.
Muita gente pensa que o combate à desigualdade se consegue através da economia, mas há pessoas, como eu, que pensam que o combate à desigualdade se faz através da educação, se compreendida como um conjunto de conhecimentos, de comportamentos e de competências e não apenas através da transferência de conhecimentos. No caso português, o combate à desigualdade tem sido tentado através da subsidiação compensatória feita pelo Estado, o que tem criado a dependência de largos sectores da sociedade portuguesa e tem contribuído muito pouco para tornar os cidadãos auto-suficientes, além de económica e politicamente livres e independentes.
Recentemente, publiquei no jornal ECO um texto de cerca de dez páginas que pretendia fazer a demonstração da necessidade de haver em Portugal um debate sobre o essencial, em vez de nos consumismos no acessório, com vista à superação da crise. Era também uma forma de mostrar a vacuidade das 140 páginas do engenheiro António Costa Silva. Escrevi-lhe a propor um debate público para comparar as perspectivas dos dois textos e tentar alguma conclusão que pudesse servir o País. Como seria de esperar, não chegou resposta, porque a ideia dominante não é resolver os problemas que enfrentamos, ou desenhar uma estratégia com futuro destinada a vencer a crise, mas apenas uns dias de glória na comunicação social.
Acresce que, do ponto de vista da criação de pensamento renovador, ou do desenvolvimento económico, a geringonça, como causa ou efeito, bloqueou o País. Tratou-se de um casamento de conveniência, em que cada noivo tem os seus próprios objectivos, o que contribui ainda mais para aprofundar a irracionalidade e a ausência de estratégia quanto ao nosso futuro.
Por vezes, na história dos povos, porventura por mero acidente, surge uma oportunidade, uma luz ao fundo do túnel, uma personalidade que marca a diferença. No nosso caso, um Presidente da República providencial e visionário, que fosse a consciência positiva do futuro da Nação, poderia fazer a diferença, por estar no centro de um sistema político fechado. Infelizmente, não tem sido isso que acontece e os últimos anos são de total fechamento nas ideias e nas práticas dominantes. Ou seja, é mais do mesmo. ■
Reflexão - Henrique Neto
(Henrique Neto)
O fatalismo do futuro
Com cerca de um terço dos votos dos eleitores inscritos, Marcelo Rebelo de Sousa voltou a ser votado para Presidente da República. Resta agora saber o que vai acontecer a Portugal nos próximos cinco anos como resultado desta eleição. O próprio Marcelo recordou no seu discurso que dentro de três anos comemoramos meio século do 25 de Abril e desejou presidir então a um País mais desenvolvido. Infelizmente, isso não vai acontecer e o mais provável é o que profetizou o candidato da Iniciativa Liberal que afirmou, acertadamente, que no final do seu mandato Marcelo presidirá ao país mais pobre da Europa. Acreditem, não me enganei antes e não me vou enganar agora.
De facto, o agora renovado mandato do Presidente da República não vai mudar substancialmente em relação ao mandato anterior e Marcelo Rebelo de Sousa continuará a suportar no poder o grande vencedor da noite de domingo passado, António Costa. Este, por sua vez, também não mudará a sua vontade de se manter no poder até tentar a sua sorte numa candidatura à Presidência da República em 2026. Claro que pelo meio vamos ter uma grave crise social, económica e financeira, mas o Primeiro-Ministro acredita que isso não será nada que o impeça de, com mais ou menos bazucas europeias e com mais ou menos promessas de bem-aventuranças, sobreviver no poder durante mais três anos a cinco anos.
Quanto ao Presidente da República, com toda a probabilidade, irá privilegiar ser amado pelos portugueses e não deixará de percorrer o País a defender, com beijos e abraços, o terreno conquistado. António Costa, por sua vez, pagará o que for necessário para que a grande família socialista e o elevado número de portugueses e empresas dependentes do Estado o mantenham no poder. Suponho, para que isto aconteça, a União Europeia, que odeia ter muitos problemas, aceitará mais alguns anos da dívida a crescer.
Como é habitual entre nós, todos os candidatos encontraram nos resultados motivos de vitória. Até o PCP, porventura por ter ficado à frente do Bloco de Esquerda, não viu nenhum problema no resultado alcançado e não vislumbrou ainda que o seu futuro está irremediavelmente perdido. Os eleitores podem não ser muito perspicazes, mas já perceberam que precisam das bazucas europeias como de pão para a boca e não compreendem que se possa abandonar quem os sustenta. A partir do momento em que o PCP deixou de ser um partido do protesto para se tornar também em mais um partido dependente do poder, o seu futuro ficou traçado. O Bloco de Esquerda, por sua vez, tentou libertar-se do PS a tempo, mas duvido que isso lhe venha a valer de muito. Apesar de tudo, a crise poderá reduzir a rapidez da queda.
A candidatura de Ana Gomes foi uma oportunidade perdida. Apesar de ser considerada uma europeísta convicta, uma vantagem nos tempos que correm, o seu posicionamento demasiado à esquerda tirou votos ao Bloco e ao PCP e não deu para chegar à segunda volta. Teria podido com outro posicionamento político de centro esquerda, mais social democrata e uma linguagem menos agressiva, ter tirado mais votos a Marcelo Rebelo de Sousa, nomeadamente da área do PSD e mesmo do CDS. Votantes que consideram, com razão, que o actual Presidente da República os enganou e não acreditam que um segundo mandato vá ser diferente. Acresce, para meu desgosto, que Ana Gomes não aproveitou esta candidatura para colocar na agenda política alguns temas de verdadeiro confronto com Marcelo e com a maioria no poder. Por exemplo: a má qualidade da democracia e as leis eleitorais; os vinte anos de estagnação económica e o empobrecimento dos portugueses em relação aos países da antiga Cortina de Ferro; a ausência de investimento e os erros cometidos pelo PS neste domínio; um sistema educativo falhado e envelhecido e, naturalmente, a corrupção, mas neste caso saindo das generalidades para demonstrar o seu efeito no empobrecimento dos portugueses.
Também não cabe na cabeça de ninguém que tenha aceite com tamanho contentamento o apoio de Pedro Nuno Santos, ao ponto de desejar publicamente que ele venha a ser o futuro secretário-geral do PS. Perdeu com isso alguns votos e ficou marcada para todo o sempre por não ter percebido que o actual ministro tem em mãos umas tantas bombas que lhe vão dar cabo da carreira política, uma das quais é o próprio António Costa e outras a TAP e a ferrovia. Infelizmente, Ana Gomes também não percebeu que podia ter deixado André Ventura em paz e não gastar tanto tempo com uma óbvia inutilidade, quando existem tantos problemas reais no nosso futuro, com ou sem o Chega.
Apesar de toda a retórica existente, o terceiro lugar de André Ventura beneficia António Costa e ele sabe disso. Apesar de esse resultado não ser automaticamente transferível para eleições legislativas, os votos malditos no Chega são votos retirados ao CDS e ao PSD, dificultando uma maioria de direita. Por sua vez, a Iniciativa Liberal é compreendida apenas por algumas elites e não terá condições de sucesso nas próximas autárquicas, que poderão vir a manter o poder do PS e ajudar o Governo.
Rui Rio continua a seguir a cartilha que diz que na oposição as eleições não se ganham, são os partidos no poder que as perdem. Talvez seja verdade, mas a escala do tempo pode não lhe ser favorável e faria melhor começar a fazer oposição a sério, através da meia dúzia de causas que enumerei e que teriam sido propícias a um outro resultado de Ana Gomes.
Em resumo, com os resultados destas eleições, António Costa pode dar-se por muito satisfeito. Os opositores de Marcelo Rebelo de Sousa não aproveitaram a ocasião para explicar aos portugueses que a aliança de poder entre o Presidente da República e o Primeiro Ministro sustenta os objectivos deste e que, como disse o ministro dos Negócios Estrangeiros depois das últimas legislativas, a geringonça não pode permitir-se colocar no poder a direita e está refém de António Costa. Veja-se o apoio que o PCP e Bloco deram recentemente ao Governo no Parlamento Europeu, na vergonhosa questão do Procurador José Guerra. Impensável com um pouco mais de seriedade.
Ou seja, a probabilidade é que teremos mais do mesmo nos próximos anos, com mais corrupção, maior controlo do Estado sobre a sociedade, maior atraso de Portugal relativamente aos outros países da União Europeia e os interesses a dominarem a economia do progresso e do desenvolvimento.
Além disso temos a pandemia, que todos os partidos deixaram, estupidamente, que dominasse a política, como se o País tivesse parado no tempo e todos os outros problemas e soluções tivessem desaparecido. Nem mesmo quando o Primeiro-Ministro confessou na Assembleia da República que não sabia prever e prevenir os acontecimentos próximos, causa de tantas mortes, acordaram para a realidade de que as únicas qualidades do Presidente da República e do Primeiro-Ministro se destinam à manutenção do poder e que nessas circunstâncias o futuro não se constrói, aceita-se. ■
terça-feira, 16 de fevereiro de 2021
Reflexão - JMMarques
A democracia e os seus inimigos (José Manuel Marques)
Milhões de indivíduos secularizados, mas evangelizados pelas novas causas justas, acabam a adoptar a mentalidade do cruzado, mergulhando naquilo a que chamei a luxúria da virtude: a adesão a uma concepção do mundo tão nobre e cheia de si que se torna profundamente intolerante para com o pensamento divergente. Não há espaço para a troca livre de argumentos e toda a palavra heterodoxa invade um território tabu, sacralizado e impermeável ao debate de ideias.
Infelizmente, o excesso de pureza sempre foi um íman irresistível para a falta de decoro. Toda a Justine tem o seu Sade
João Miguel Tavares , Público, 31de Dezembro de 2020
O excerto de João Miguel Tavares que saiu no Público, faz parte de três textos a que o seu autor chamou Ensaio sobre o Tribalismo.
Tal como fica patente no passo que escolhemos , trata-se de uma análise crítica ao que o autor designa o discurso pretensamente secularizado da intolerância mas que enferma dos mesmos pecados que o discurso "beato" ou a confissão, que em tempos idos, a Inquisição arrancava aos seus infelizes suspeitos, logo condenados, tivessem ou não consciência das suas heresias ou pecados. Eu sou culpado, não importa de quê, nem porquê.
Sendo verdade que toda a ação ou acontecimento provoca reação, mentalidades que sustentaram comportamentos, hoje , vistos, e bem, como desviantes ou mesmo altamente desviantes,, durante milénios ou séculos, como a subalternização das mulheres, os maus tratos e os abuso sobre crianças, a escravidão de outros seres humanos, a crueldade ou a negligência com os animais, levaram a que, nos nossos tempos , essas matérias, não só sejam abertamente analisadas comentadas como, claro, alvo de críticas, até porque o documento que consagra a dignidade humana não tem assim tanto tempo. Foi adotada pela ONU em 1948., ou seja aproximadamente três anos após o término da mais mortífera guerra de que há memória e sem dúvida onde ocorrera, em quantidade e em ordem de importância, os maiores atentados contra a dignidade humana.
Não é então novidade que hoje, pessoas bem pensantes, seguramente cheias de boas intenções se dediquem , e ainda bem, ao ativismo seja contra o abuso ou negligência de seres humanos, sobretudo os mais vulneráveis, crianças, mulheres em vários pontos do planeta, pessoas reduzidas à condição de escravos., idosos abandonados ou abusados , animais maltratados, etc.
Tudo isso é deveras nobre e necessário, logo louvável e muito inspirador.
O nosso ponto é precisamente esse. Sob o pretexto de se servir convictamente ou mesmo apaixonadamente uma dada causa, ganhamos uma espécie de estado beatífico em que nos sentimos tão confiantes em nós mesmos e nos ideais que defendemos que adquirimos uma espécie de surdez, relativamente ao discurso do outro, caso não seja coincidente com o nosso. Como bons fanáticos em que tornamos, diabolizamos todo o discurso e ação divergente.
Entendamo-nos , é preciso distinguir o que é legal do que o não é.
Felizmente, nos nossos dias , mercê da vontade transformadora dos povos. grande parte de nós vive em regimes livres. E é nesse contexto, e só nesse, que falo.
Posso, pessoalmente, não gostar de caça, tourada ou corridas de galgos, mas isso não me dá o direito de tratar como criminosos os que apoiem essas atividades ou mesmo as pratiquem , se o fizerem no exercício da estrita legalidade. Concordo com eles? Nem por sombras, mas é evidente que uma ideia, se for considerada uma má ideia, combate-se com outra ideia. Claro que tal não é extensível a tolerar ações de violação, trapaça ou abuso. Mais, os seus autores devem ser sumariamente detidos? Claro, pois as suas práticas são ilícitas para além de serem imorais ou mesmo perversas. Mas se alguém quiser compreender o que está por detrás de um violador ou abusador, não passa a ser violador por isso. Tão pouco de deve impedir a reflexão ou o debate sobre o próprio conceito de violação. sob pena de estarmos a condenar algo que não chegamos a conhecer e menos a compreender.
Questionar ou investigar não significa anuir. É procurar as causas mais profundas de um comportamento para poder, eventualmente , erradicá-lo. Referimo-nos, repito-o e aos comportamentos ilegais.
Os que ocorrem dentro da legalidade, ainda que discutíveis ou mesmo, eventualmente e subjetivamente, considerados repugnantes, não têm que ser diabolizados, ao ponto de alguém que procura entender ou defender o ponto de vista que os sustenta, ser considerado tão malévolo quanto os agentes do mesmo.
Claro que podemos ser sensíveis e críticos aos comportamentos machistas ou que tendam coisificar seres sencientes que não humanos. Mas isso não nos dispensa de debater com as pessoas que defendem ou mesmo que são dadas a essa práticas ou ideias.
Nunca se teria abolido a escravatura se não tivesse havido um debate sério sobre a condição do escravo ou a história da escravatura ou até o entender de modo crítico o ponto de vista dos anti abolicionistas quanto o dos abolicionistas.
Uma vez mais uma ideia combate-se com outra ideia, não se esmaga ou se ignora, sob pena de a ideia sobrevivente, por razoável que seja não se cimentar, pois é meramente objeto de uma fé cega e não de aceitação razoável.
Esta questão transporta-nos para aquilo que consideramos, a essência do problema, o comportamento anti democrático de muitos defensores de ideais e princípios inteiramente estimáveis em si mesmos.
Ser contra a escravatura é uma atitude civilizada, em linha com a contemporaneidade, a atual jurisprudência e o conceito vigente de dignidade humana. Não pode ser igual a condenar, às vezes sem qualquer fundamento, quem se convencionou que no passado, não tenha condenado essa prática . É tão absurdo profanar a estátua de Pe. António Vieira a esse respeito, como considerar os portugueses, como um todo, como racistas ou esclavagistas.
De resto, sinal dos tempos, causas nobres como a igualdade de género ou o combate ao racismo, tornaram-se bandeiras como uma tal dimensão icónica que frequentemente que as agita perde a noção da pertinência da sua aplicabilidade.
Exemplarmente, todos pudemos assistir ao triste espetáculo de uma super atleta do ténis internacional, justamente advertida, de acordo com as regras por um juiz numa final, insultar o mesmo juiz brandindo o espectro da sua advertência /penalização teu cunhos racistas ou sexistas. É de facto lamentável o aproveitamento de causas nobres para ocultar falhas grosseiras de caráter.
Relativamente ao problema das culpas comunitárias questinamos:
Se o meu tetra avô foi esclavagista sou tão culpado disso como um alemão nascido em1946 pode ser de o seu pai ter sido SS.
A menos que se acredite na ananké ( destino) da tragédia grega a que os seus heróis estavam sujeitos, podendo ainda assim revoltarem-se contra esse destino Híbris (insubmissão)quase sempre com consequências catastróficas para as personagens heroicas.
Ou seja, não faz nenhum sentido promover a cultura da censura sobre quem entendemos que esteja manchado com um qualquer pecado que tememos ou detestamos. Nisso, quem o faz não se distingue dos fanáticos que decidiram que todos os judeus eram desprezíveis ou todos os defensores do sistema capitalistas eram inimigos do povo.
Quando não se debatem as ideias, sobra a atitude fervorosa, é certo, de quem acredita e as defende sem limites e sem sentido crítico. Isso pode ser aceitável na preferência estética ou religiosa mas perigoso quando se trata de princípios de Filosofia social e política que afetam toda a comunidade. Perigoso, porque ao reduzir quem não pensa como nós, a ser diabolizado e visto como intolerável inimigo. Logo hostilizado ou ignorado.
Escusado será dizer que essa prática é a negação da via democrática no que ela nos oferece de melhor: a liberdade de debatermos e escolhermos nos limites da lei. Se a lei não é justa ou boa, ainda aí teremos a oportunidade de a examinar e propor a sua reinvenção. Não se impõem novas leis a cacete ou sob o opróbrio da suspeição.
Como se ensina em filosofia, reduzir campo de escolha em ser por mim e ou contra mim , é criar a falácia do falso dilema. Posso concordar ou discordar e.... ou mas.... Isto é, sob a capa da coragem e da clarividência os arautos das teses absolutas, sejam à direita ou à esquerda, estão a estigmatizar, ajuizar dogmaticamente e não a debater ou a aprofundar. São práticas perigosas pois não dão espaço para sermos na diversidade das nossa consciências e das escolhas refletidas que nos caracterizam como agentes humanos.
É mais fácil gritar, agredir ou matar do que conquistar terreno, laboriosamente, através da dialéctica argumentativa e no respeito pelo interlocutor que não é um mero ouvinte ou uma coisa, uma couve flor, como diria Sartre.
O mundo duma só cor poderá ser uma ideia tentadora, para os que defendem o tom único.
Por muito boas que as ideias sejam , quando se silencia ou se agride de alguma forma em seu nome, será legítimo duvidar da sua bondade ou da forma que essas ideias estarão a tomar.
José Manuel Marques
domingo, 14 de fevereiro de 2021
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
Reflexão (LBC) - Andebol (Campeonato do Mundo)
Quando vejo um jogo como os das meias finais ou o da final do recente campeonato do Mundo de andebol no Egipto, interrogo-me, sistematicamente, qual a equiparação possível e qual o misterioso encanto que terão os jogos de outras modalidades colectivas em comparação com esta. Exasperado, no limite, ou por absurdo se se quiser, e eternamente perplexo pelo fascínio que o futebol parece ter, mesmo junto de pessoas inteligentes, questiono-me: o que é que uma disciplina como o andebol tem de comparável com o futebol?