segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Reflexão - De Sá Carneiro ao novo normal (Alberto Gonçalves)

 (sublinhados pessoais)


De Sá Carneiro ao novo normal

Nenhum regime se compõe exclusivamente de “eleitos”. Mas nenhum regime aguenta impune a ascensão exclusiva de mediocridades.

Não tenho a certeza do ano, talvez 1979, durante a campanha das “legislativas”. Tenho a certeza do lugar: o restaurante de uns primos, em Vimioso. E lembro-me do pretexto, uma almoçarada de militantes e eleitores do PPD/PSD. A sala estava cheia e ruidosa, com os convivas, cinquenta ou sessenta, a investir fortemente nos aperitivos e na conversa. De repente, a tropa fandanga calou-se à entrada de um homem. Não houve anúncio ou ordem, só um homem baixinho e sorridente a passar a ombreira da porta e, com passos claros e um ou dois acenos ligeiros, a dirigir-se para a cadeira sob um silêncio de claustros. No instante imediato, o claustro lançou-se a gritar o nome do homem, com os dedinhos que haviam segurado o presunto agora em forma de “V”.

O homem era obviamente Sá Carneiro e eu, que com nove ou dez anos estava ali de férias e não integrava o bando de comensais, espreitava o episódio fascinado com a descoberta: pelos vistos, os seres humanos variavam em peso – e isso não dependia da balança. Após o repasto, recordo o meu pai a trocar gargalhadas e um abraço com Sá Carneiro, e eu achar aquilo ousadíssimo. E recordo um amigo da família, socialista e devoto de Salgado Zenha, confessar que se arrepiou na presença do futuro primeiro-ministro.

Não quero resvalar para a hagiografia, ou sequer para uma celebração do “carisma”, característica que ninguém sabe definir e que ocasionalmente calha de abençoar espécimes desaconselháveis. O que Sá Carneiro possuía e inspirava, fosse gravitas ou respeito, definia-se melhor pelas reacções que suscitava. E as reacções eram idênticas em todas as situações que testemunhei. Entre parêntesis, explico que depois de o meu pai se embrenhar por uns meses na fundação do PPD na zona do Porto, ele e a minha mãe não deixaram de seguir o líder onde pudessem, desde comícios grandiosos a churrascos sem grandeza. E, não me perguntem porquê, levavam-me com eles. A condição era a presença de Sá Carneiro, e a consequência era invariavelmente a reverência não requisitada que aquele sujeito discreto e afável provocava.

Se calhar, a palavra que procuro, sem grande empenho, é “dignidade”. É provável que os outros reconhecessem em Sá Carneiro a dignidade que eles próprios não teriam ou julgavam não ter, por falta de sorte ou de coragem. E é provável que muitos lidassem mal com essa desvantagem, e contrariados dedicassem a Sá Carneiro difamações reles, de carácter sentimental e material. Não sei. Sei que, após décadas a escrever sobre política, não encontrei com frequência exemplos similares. Na verdade, encontrei um único exemplo.

Entrevistei Cavaco e Soares em 2005, casos raros em que vislumbrei um vestígio da “coisa”, a tal “coisa” que eleva uns pouquíssimos alguns centímetros acima dos restantes, e bem acima da mera legitimidade que o voto confere. Também estive literalmente ao colo de Eanes numa “arruada” em 1976, e, não pela qualidade do colo, mantenho que o general “mereceu” o cargo que viria a ocupar semanas mais tarde. Em geral, porém, os indivíduos e indivíduas que conheci, directamente ou a precavida distância, não se distinguem pela dignidade ou pela tal “coisa”. Mesmo os simpáticos e educados, não “merecem” coisa nenhuma. A excepção, que julgo evidente, é Pedro Passos Coelho, e não preciso de desenvolver as razões pelas quais há inteira justiça em compará-lo com Sá Carneiro. E as razões pelas quais se tornou, ou provavelmente sempre foi, um corpo estranho na política portuguesa actual.

Nenhum regime se compõe exclusivamente de “eleitos”. Mas nenhum regime aguenta impune a ascensão exclusiva de mediocridades, e Portugal parece estar submetido a um permanente teste de esforço. É que quando falo de mediocridades não falo de ideologia, inteligência, currículo, erudição, simpatia, popularidade: falo da plausibilidade de determinada pessoa em desempenhar determinado cargo. Sá Carneiro e as figuras que referi foram estadistas plausíveis. Os demais, com tendência de agravamento galopante, não foram. E se, independentemente das respectivas virtudes e desgraças, é difícil “acreditar” em Balsemão, Santana, Sampaio ou Montenegro, é rigorosamente impossível “acreditar” em Guterres, Durão, Sócrates, Costa ou esse monumento ao inacreditável que se chama Marcelo Rebelo de Sousa.

Acima de todos, o conhecido prof. Marcelo é responsável pela erosão do que sobrava na relação de exigência entre os eleitores e os seus representantes à escala nacional. No peculiar universo do “poder local”, a exigência nunca foi grande, se é que havia alguma. Nas chefias do Estado e do governo, havia mínimos, sucessivamente rebaixados por personagens menores e implodidos de vez pelo ainda inquilino de Belém. Depois do prof. Marcelo, não há mínimos e o poço não tem fundo. As incontáveis (no sentido de que temos vergonha de as contar) proezas da personagem são um repositório de embaraços e um aval definitivo à vulgaridade.

Isto tudo para dizer o seguinte: vejo por aí certo desconsolo com a genérica irrelevância dos candidatos à presidência. À parte a decência ou indecência que possamos atribuir a cada um, vocês esperavam o quê em 2025? Vocês, que toleram horrores e apreciam o horroroso termo, “normalizaram” o que temos, somos e merecemos. Sá Carneiro não morreu apenas em Camarate.

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