O que falta dizer sobre Hugo Chávez que ainda não tenha sido dito? Quase tudo. Embora as convenções aconselhem a não insultar um morto recente, o bom senso dispensaria a veneração respeitosa que por aí vai, mais adequada a um santo do que a uma personagem pouco recomendável.
Imagine-se um insignificante militar transformado em agitador, que jovialmente mistura a leitura de três citações de Marx com a incarnação de Simon Bolívar, por acaso um ódio particular daquele. Imagine-se que o agitador promove sucessivas conspirações "anticapitalistas" até tentar, e falhar, um golpe de Estado. Imagine-se que, após breve passagem pela cadeia, regressa à agitação e, mediante um talento inato para o populismo, alcança finalmente o poder pela via democrática, que se apressa a demolir de modo a perpetuar o seu reinado. Imagine-se que não falamos de Berlim em 1933, mas de Caracas em 1998: eis Chávez, cujas semelhanças com o velho führer terminam aí.
Privado da força necessária, Chávez não invadiu os seus inimigos, limitando-se a atirar-lhes adjectivos e fúria analfabeta. No resto, só moderadamente difamou e perseguiu a comunidade judaica, só se aliou a líderes psicopatas para efeitos simbólicos e só causou estragos em terceiros no que toca à paciência. Se descontarmos certa influência nas repúblicas das bananas vizinhas, a acção devastadora de Chávez circunscreveu--se à Venezuela, que sob o carismático da praxe viu suprimida a liberdade de expressão, incrementada a violência (oficial e civil), saqueada a propriedade privada, potenciada a corrupção e reduzida a economia à estrita dependência do petróleo, o qual, mal por mal, impediu a bancarrota absoluta. Os simpatizantes de ditaduras aplaudem as "políticas sociais", leia-se as migalhas com que a nomenclatura do regime, crescentemente multimilionária, comprou os votos dos miseráveis. Em determinadas franjas do Ocidente do século XXI, o estereótipo do "pai da pátria" continua a suscitar ternura.
Sem surpresas, em Portugal o falecimento de Chávez não ajudou a lembrar estas trivialidades. A generalidade dos media, vergada ao alegado fascínio do "comandante", tratou a coisa com desmesurada pompa e inusitado detalhe, decidindo esclarecer-nos pela enésima vez que um tirano, logo que prospere à custa da invocação dos oprimidos, é um "revolucionário". Quanto à classe política indígena, que ao dito alto nível já celebrara Chávez em vida (ver, por favor, a comenda atribuída por Jorge Sampaio, as vénias de Mário Soares e a admiração aparentemente sincera de José Sócrates), resolveu cobrir o ditador de elogios fúnebres, menos grotescos à direita (o "amigo de Portugal", de acordo com Paulo Portas) do que à esquerda (o combatente do "liberalismo e do capitalismo selvagem", de acordo com Alberto João Jardim).
Em qualquer dos casos, as opiniões são irrelevantes: a obra de Chávez revela-se no seu legado, desde os herdeiros políticos que recuperam a hilariante tese do cancro infligido (pelos EUA, claro) ao típico encobrimento da doença (há um par de semanas, a Embaixada da Venezuela acusou-me de exagerar a respectiva gravidade), desde o cortejo de luminárias presentes no funeral (Ahmadinejad, o segundo Castro e o sr. Lukashenko da Bielorrússia tiveram dieito a lugares de primeira fila; Kadhafi não durou o suficiente) até ao embalsamento do cadáver (à semelhança, garantiu o sucessor Nicolás Maduro, "de Ho Chi Min, Lenine e Mao Tsé-tung"). Por enquanto, a loucura folclórica do "chavismo" sobrevive ao seu mentor.
Domingo, 3 de Março
Navio ao fundo
Apesar de Vítor Gaspar repetidamente errar nas previsões e falhar os objectivos, durante muito tempo achei-o um sujeito rigoroso. Provavelmente por causa do modo de falar e do conteúdo do que dizia. Num país empenhado em torturar a língua e numa classe em que a língua é sequestrada todos os dias a benefício de conversa fiada, confesso desde já a minha parcialidade por qualquer político que se exprima num português seco, com as palavras contadas e bem medidas. O desemprego ultrapassou as piores estimativas? Pois ultrapassou. A receita fiscal ficou bastante aquém do esperado? Pois ficou. A recessão duplicou as antevisões? Pois duplicou, embora a serenidade técnica do dr. Gaspar ao constatar estas pequenas desgraças transmitisse a ideia de que, sem ele, as desgraças seriam ainda maiores. Dito de maneira diferente, o dr. Gaspar parecia-me diferente dos seus pares. Parecia.
O idílio terminou no momento em que o ministro das Finanças afirmou o seguinte: "Portugal é um povo de marinheiros capaz de superar tormentas." Repito, para que uma eventual gralha não desvirtue semelhante parvoíce: "Portugal é um povo de marinheiros capaz de superar tormentas." O que significa isto? Em teoria, nada. Na prática, significa que o dr. Gaspar se rendeu, ou ameaça render-se, ao charlatanismo lírico que caracteriza a retórica política caseira. Talvez estivesse num dia mau. Porém, não merece desculpas.
Não haja dúvidas. Sempre que um governante comete uma alusão à gesta dos descobrimentos, à epopeia marítima, às gentes que deram novos mundos ao mundo e aos sonhadores que viram para além do Bojador, é certo que o sujeito ficou sem argumentos ou nunca os teve logo de início. O recurso ao patriotismo, para cúmulo se "fundamentado" em proezas remotas, é um sinal manifesto de abdicação. Invocar Vasco da Gama para compensar as massas do saque fiscal é tão pertinente quanto isentar os gregos da loucura despesista mediante referências a Aristóteles. Trata-se de um logro e, pior, de um aviso: quando o habitualmente circunspecto dr. Gaspar adopta a veneração das glórias do passado é lícito recear que até ele percebeu a miséria do presente e desistiu de remendar o futuro.
Os protestos contra a troika, coitada, são uma coisa. As confissões do Governo, mesmo que dissimuladas, são outra. Não é por arruadas "transversais" convocadas pela CGTP ou pelo Bloco que se emenda isto, mas a resignação ridiculamente disfarçada do ministro das Finanças sugere que isto não tem emenda.
Quinta-feira, 7 de Março
As histórias do dr. Soares
Não sou monárquico, mas dado o gabarito dos nossos republicanos praticamente não sobra alternativa. Mário Soares, um dos mais notáveis representantes da espécie, decidiu avisar o Governo que, se não se demitir "a bem" (cito), sairá "a mal, com o povo indignado, como sucedeu no fim da monarquia".
Nem mais. É do conhecimento geral que a república não foi um motim concebido por umas dúzias de rústicos do Rossio. E que a população se levantou em peso para festejar o advento da democracia autêntica. E que o partido dominante do novo regime se perpetuou quase ininterruptamente no poder sem a ajuda de fraudes. E que a liberdade de expressão, a tolerância e o progresso constituíram os pontos fortes dos senhores que tomaram conta disto. E que a estabilidade política e social então iniciada influenciou um século de prosperidade de que ainda beneficiamos.
Agora a sério, é rara a semana em que o dr. Soares não se esforce por provar que a sabedoria da idade é uma força de expressão e, com frequência, uma completa patranha. Nesta e noutras questões, a pergunta que se impõe é: o dr. Soares pretende enganar quem? E a resposta é: descontados três ou quatro fervorosos da Carbonária, provavelmente apenas a si próprio. Por mim, gosto que a imprensa corra a ouvi-lo a pretexto de diversos assuntos, e só lamento que não o faça a pretexto de todos.
Julgo ser consensual a expectativa em ouvir a opinião abalizada do dr. Soares acerca de: receitas de sushi, campeonatos da bola, o bosão de Higgs, a sucessão de Ratzinger, aromoterapia, energia nuclear, séries do canal HBO, candeeiros do Ikea, o novo álbum de John Grant, depressão pós-parto, técnicas de betonagem e literatura russa. Em tempos de crise, duvido que rir seja exactamente o melhor remédio. Porém, é um óptimo paliativo.
Alberto Gonçalves in DN 10.03.2012
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