quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Reflexão - Os nossos inimigos têm mísseis. Nós temos princípios (Rodrigues do Carmo)

 (sublinhados meus)


Os nossos inimigos têm mísseis. Nós temos princípios

Quem acredita que o mundo é um condomínio de filósofos acabará por descobrir, cedo ou tarde, que os filósofos não têm mísseis. E quem não os tem acaba a discutir ética no idioma de quem os dispara.

Nos últimos anos, os portugueses habituaram-se a ouvir falar de mísseis com a mesma naturalidade com que ouvem falar de futebol. Mísseis balísticos, mísseis de cruzeiro, mísseis hipersónicos. Há tempos, uma comentadora televisiva mencionou até um perturbador “míssil basilisco”. Um prodígio mito-zoológico da ignorância.

Um míssil balístico é como um foguete das festas populares. Sobe, propulsionado pela deflagração de uma substância química, atinge um apogeu e depois regressa à Terra em queda, arrastando consigo apocalipses em miniatura.

Foi inventado na Europa. O primeiro, o V-2 alemão, criado por Von Braun, foi lançado em 1942 e, dois anos depois, já caía sobre Londres e Paris semeando destruição e terror. Mais de três mil desses engenhos voaram nos últimos meses da guerra. Foi, literalmente, o primeiro objecto humano a tocar o espaço exterior, ao serviço da Alemanha e do Tio Adolfo.

Os misseis balísticos de curto alcance mantêm-se geralmente dentro da atmosfera terrestre, mas os de maior alcance viajam para fora dela, alguns vão mesmo para além dos 1500 km de altitude (a Estação Espacial Internacional orbita a 400 km de altura). Alguns atingem o solo a velocidades hipersónicas. O maior ataque de mísseis balísticos da história partiu do Irão, em 2024, com duzentos lançados de uma vez sobre Israel.

A Europa não tem nada que se pareça, porque resolveu não ter. Tirando a França e o Reino Unido, que mantêm uns quantos, mas apenas com ogivas nucleares, selados sob códigos que ninguém quer usar, o continente praticamente não tem mísseis convencionais de longo alcance. Mísseis balísticos terrestres? Quase zero. Mísseis de cruzeiro com mais de mil quilómetros de alcance? Meia dúzia, e quase todos lançados do mar.

Em contrapartida, o mundo fora do condomínio europeu parece uma feira de foguetões: Rússia, Irão, China, Taiwan, Coreias, Hezbollah, Houthis, todos com arsenais de mísseis capazes de atingir alvos a milhares de quilómetros.

Como chegámos aqui? Tudo começou com o Tratado INF, assinado em 1987 entre os EUA e a URSS. O acordo eliminava mísseis terrestres de médio alcance (500 a 5.500 km), e embora fosse pensado para Washington e Moscovo, congelou as decisões europeias durante três décadas.

O tratado morreu em 2019, mas a inércia ficou: a Europa afeiçoou-se à ideia de que não ter mísseis era uma virtude. Aliás, evitar tudo o que fizesse lembrar a guerra, era virtude. A dependência, embalada pelo moralismo, tornou-se um modo de estar. Os europeus deitaram-se à sombra do guarda-chuva nuclear americano e concentraram-se no conforto de quem acha que já está para lá da História.

O problema é que a dissuasão terceirizada só funciona enquanto o senhorio, neste caso, os EUA, estiver para aí virado. Quando começa a olhar de esguelha, como está a acontecer, a coisa muda de figura. Os EUA fartaram-se. A Europa pregou, durante décadas, uma espécie de pacifismo aristocrático que incluía um rotineiro deboche do aliado que lhes assegurava a tranquilidade. Acreditou que a geopolítica se resolvia com palestras sobre género e descarbonização. Recusou-se a possuir mísseis de cruzeiro e balísticos de longo alcance para cargas convencionais. Foi uma opção política e cultural, embalada por idealismos kantianos e pela reconfortante convicção de que a guerra era um anacronismo impróprio de pessoas civilizadas. Hoje, essa escolha revela-se não só ingénua como perigosa e suicida.

Resultado: muitos países, muitos orçamentos, muitas certezas e nenhuma capacidade terrestre de ataque profundo. A França, valha a verdade, tem os seus MdCN. Mísseis de cruzeiro navais com alcance de cerca de 1.400 km. O Reino Unido mantém algumas dezenas de Tomahawk em submarinos. E é tudo. De resto, o que existe são mísseis de cruzeiro de curto alcance, lançados de plataformas aéreas. Storm Shadow, Taurus, e outros, bons para ataques tácticos, mas dependentes de aviões e de condições de supremacia aérea. No chão, onde a Rússia, o Irão ou a Coreia do Norte têm as suas plataformas balísticas, a Europa não tem nada.

Sim, há finalmente, algum despertar. A França, a Alemanha, a Itália e a Polónia estão a desenvolver novos mísseis de cruzeiro terrestres com alcances entre 1000 e 2000 km de alcance. Um esforço tardio, mas necessário. A França e o Reino Unido também trabalham no FC/ASW (Stratus), o sucessor do Storm Shadow e do Exocet.

Do outro lado, a Rússia dispara regularmente os seus Iskander-M (balísticos) e Khinzal (cruzeiro), sobre a Ucrânia. Mísseis hipersónicos, difíceis de interceptar. O Irão tem um catálogo inteiro: Fateh, Zolfaghar, Shahab, Ghadr, Emad, todos testados e usados, muitos já com precisão métrica. O Hezbollah tem mísseis iranianos capazes de cobrir todo o território israelita e chegar a Chipre. Os Houthis, no Iémen, disparam Burkan e Qiam contra navios e refinarias a centenas de quilómetros.

A Europa não joga neste campeonato. As consequências de um continente desarmado são óbvias até para um estudante do secundário. Sem mísseis de longo alcance, a dissuasão europeia é uma anedota.

Não há como responder a um ataque sem escalar. Quando a Rússia dispara um Iskander convencional sobre Kharkiv ou quando o Irão lança uma chuva de mísseis a 1 500 km, a Europa limita-se a mandar condolências e declarações e manifestar profunda preocupação.

Não estamos a falar de teoria: estamos a ver, na prática, quem tem meios para ferir à distância e quem fica à mercê do tempo, do vento e do arbítrio do inimigo.Porque a resposta que alguns países da Europa têm, só pode ser por via aérea. Cara, exigente, escalatória, dependente de reabastecimentos e vulnerável a defesas modernas.

Na guerra, quem tem meios impõe o ritmo. Quem não tem, marca reuniões e fala de diplomacia. E aqui surge um incentivo perverso: se o agressor sabe que a Europa não pode retaliar ao mesmo nível, mais provavelmente arriscará a agressão.  A ausência de capacidade de resposta simétrica não dissuade; encoraja. Se um míssil convencional se abate sobre uma cidade europeia, como se responde? Com aviões numa operação que exige supremacia aérea e reabastecimentos em voo? Com um comunicado a repudiar o ataque, a convocar uma cimeira e reafirmar a nossa determinação?

Alguns dizem que possuir certas armas é imoral, recuperando o conceito de “armas pouco agradáveis a Deus”, decantado em 1215, no Concílio de Latrão a propósito da besta. Mas a moralidade, sem meios, é uma flor de estufa num campo de minas. Nenhum hospital se protege com retórica. Nenhuma cidade resiste com flores e comunicados.

E há outro efeito perverso: um general impedido de recorrer a certas armas, mais dificilmente conceberá respostas criativas e antecipatórias e tenderá a andar sempre um passo atrás do inimigo O que há que fazer é também óbvio: É tempo de deixar o romance kantiano na estante e encarar a guerra tal como ela é. A recusa de possuir certas armas não é virtude, é apenas vulnerabilidade. Virtude é ter meios e não precisar de os usar. Porque o inimigo sabe que, se nos ferir, não ficará impune. A dissuasão não se faz com palavras, faz-se com capacidade, vontade e credibilidade.

A Europa precisa de acelerar programas de “deep strike” convencionais: mísseis de cruzeiro que vão até aos 2000 km, e mísseis balísticos de teatro. Lançáveis de plataformas terrestres, navais e aéreas. E, sobretudo, definir doutrina clara de resposta: rápida, proporcional e credível.

O mundo mudou e os mísseis voltaram a ser o idioma da força. Os nossos inimigos falam-no fluentemente e nós ainda estamos a conjugar o verbo “condenar”. Se continuarmos assim, não tardaremos a perceber que, na guerra, quem só tem princípios e não tem meios, acaba sempre no papel de figurante moral.

Quem insiste em acreditar que o mundo é um condomínio de filósofos, acabará por descobrir, mais tarde ou mais cedo, que os filósofos não têm mísseis. E quem não os tem, acaba a discutir ética no idioma de quem os dispara.

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