ESTRAGAR O POUCO QUE RESTA (José Pacheco Pereira)
Eu sou o último dos ecologistas, "verdes", ou coisa semelhante. Sempre tive uma grande desconfiança com as posições ecologistas e um enorme cepticismo quanto ao pano de fundo dos seus argumentos. Não fui muito sensível às "gravuras que não sabiam nadar". Sou céptico quanto aos movimentos, discursos e demagogias sobre o "aquecimento global", transformados numa vaga ideologia anti capitalista e anti-industrial, que ignora que o nosso modelo de desenvolvimento, predador que seja, e é, garante apesar de tudo um mínimo de qualidade de vida para biliões de pessoas que nunca conseguiriam aceder a esse limiar sem estragar parte da natureza quase sempre sem conta, peso, nem medida. Desconfio da retórica catastrofista com o "aquecimento global" e estou muito do lado de Bjorn Lomborg nos seus argumentos contra a demagogia ambientalista que se tornou um discurso politicamente correcto nos últimos anos, nos países simultaneamente mais ricos e nos únicos que podem controlar alguma coisa a predação da natureza, exactamente porque são ricos e podem pagar esse luxo que China, Índia e Brasil não podem.
Dito isto, que me coloca na lista negra dos ambientalistas - já no Parlamento Europeu, eu e Vasco Graça Moura estávamos na lista dos menos "verdes" dos deputados -, vou terçar as frágeis armas da opinião pela causa do vale do Tua e, por extensão, do Alto Douro vinhateiro e do que não é vinhateiro, mas simplesmente belo como pouca coisa portuguesa que reste. E isto significa que entendo que é um verdadeiro crime e uma asneira, infelizmente com uma sólida tradição de outras asneiras por trás, construir a barragem prevista para o Tua.
O que temos no vale do Tua, o rio, o vale, a linha ferroviária, o equilíbrio da terra, da água, das escarpas, da vegetação, do vento, da solidão agreste, é hoje único em Portugal. Ou seja, não há mais. Acaba-se com o vale do Tua e com excepção de alguns trechos fluviais, muito mais pequenos e sem a dimensão agreste do Tua, já não existe nada de semelhante em lado nenhum. Estamos diligentemente a acabar com outro destes vales, o do Sabor, pelo que sobra apenas o Tua.
Dito isto, que me coloca na lista negra dos ambientalistas - já no Parlamento Europeu, eu e Vasco Graça Moura estávamos na lista dos menos "verdes" dos deputados -, vou terçar as frágeis armas da opinião pela causa do vale do Tua e, por extensão, do Alto Douro vinhateiro e do que não é vinhateiro, mas simplesmente belo como pouca coisa portuguesa que reste. E isto significa que entendo que é um verdadeiro crime e uma asneira, infelizmente com uma sólida tradição de outras asneiras por trás, construir a barragem prevista para o Tua.
O que temos no vale do Tua, o rio, o vale, a linha ferroviária, o equilíbrio da terra, da água, das escarpas, da vegetação, do vento, da solidão agreste, é hoje único em Portugal. Ou seja, não há mais. Acaba-se com o vale do Tua e com excepção de alguns trechos fluviais, muito mais pequenos e sem a dimensão agreste do Tua, já não existe nada de semelhante em lado nenhum. Estamos diligentemente a acabar com outro destes vales, o do Sabor, pelo que sobra apenas o Tua.
Eu tive ainda o privilégio de andar na Linha do Tua (como na do Corgo, igualmente encerrada) e era uma viagem inesquecível, que certamente será um must em qualquer turismo de amadores de comboios, popular em países como o Reino Unido e nos EUA. A "composição" era uma mescla de velho material ferroviário reciclado, que incluía máquinas espanholas e jugoslavas e carruagens italianas dos anos 30. A linha não era então turística, nem nada que se pareça, mas uma linha ferroviária normal, servindo o tráfego normal, as pessoas da terra e das aldeias que tinham no comboio o único meio de transporte que existia. Era um mundo do passado, percebia-se por tudo, pela lentidão, pelo trajecto, pelo mundo que estava a acabar por detrás de estações com nomes bárbaros e som germânico, ou de santos cristãos.
Mas o vale do Tua era o vale do Tua, um sítio belíssimo, onde o calor a pique do Verão, ou o despertar da Primavera ou as primeiras chuvas de Outono faziam a terra cheirar a terra, a urze, aos mil e um cheiros mediterrânicos que hoje só conhecemos dos livros, quando lemos os clássicos. Num sítio muito diferente e distante, conheci os mesmos cheiros e o silêncio quente perturbado apenas pelos besouros e por um vento suave e denso. Na Turquia, ao lado de velhas ruínas por escavar, algures no interior da Anatólia, já bem dentro da Jónia antiga. É o mesmo país, a mesma terra, a mesma história, a mesma pátria antiga que nos fez. Estivessem vivos homens como Orlando Ribeiro, e eles dir-nos-iam os elos que estamos a quebrar, não com o passado, mas com o presente e connosco próprios.
Portugal é um país que tem destruído intensamente a sua paisagem natural nos últimos anos, tem uma grande densidade de barragens a norte e cada barragem é um vale de um rio que desaparece. As cumeadas dos montes já estão cheias de eólicas, e quase que não é possível em lado nenhum olhar à volta de um ponto alto, mesmo nos parques naturais, sem ver artefactos colocados bem diante dos nossos olhos nos últimos 20 anos. Já não sabemos, por exemplo, o que é uma noite escura, e por isso o espanto homérico com o céu e as estrelas é uma experiência que já "não nos assiste", para assentar os pés na terra em que verdadeiramente vivemos, a das trivialidades boçais.
Eu sei que uma parte desta destruição era inevitável e faz parte de um difícil trade-off entre a economia, fonte de riqueza, os recursos a explorar, e o ambiente, mas, como estamos a chegar aos limites de tudo - últimos vales, últimos montes, ultimas paisagens -, esse trade-off esgotou-se nas suas virtualidades, e é hoje uma desvantagem cujos custos se pagarão num futuro próximo. As crianças que hoje nascem vão viver num mundo dominado pela poluição luminosa, de caos urbanístico, construções clandestinas mal-amanhadas e sem paisagem natural. Nunca vão ver a Via Láctea a não ser em fotografias, não sabem o que é um vale selvagem de um rio a não ser nos filmes americanos, nunca cheirarão a urze, nem saberão o que é uma giesta, não terão o vento na cara no cimo duma montanha, sem este trazer a marca conspurcada do mundo de lixo que começa logo uns metros mais abaixo, nunca verão um carvalho, nunca comerão uma truta sem ser de viveiro, não saberão o que é o silêncio "habitado" que muda o coração dos homens que o sabem ouvir.
Mas o vale do Tua era o vale do Tua, um sítio belíssimo, onde o calor a pique do Verão, ou o despertar da Primavera ou as primeiras chuvas de Outono faziam a terra cheirar a terra, a urze, aos mil e um cheiros mediterrânicos que hoje só conhecemos dos livros, quando lemos os clássicos. Num sítio muito diferente e distante, conheci os mesmos cheiros e o silêncio quente perturbado apenas pelos besouros e por um vento suave e denso. Na Turquia, ao lado de velhas ruínas por escavar, algures no interior da Anatólia, já bem dentro da Jónia antiga. É o mesmo país, a mesma terra, a mesma história, a mesma pátria antiga que nos fez. Estivessem vivos homens como Orlando Ribeiro, e eles dir-nos-iam os elos que estamos a quebrar, não com o passado, mas com o presente e connosco próprios.
Portugal é um país que tem destruído intensamente a sua paisagem natural nos últimos anos, tem uma grande densidade de barragens a norte e cada barragem é um vale de um rio que desaparece. As cumeadas dos montes já estão cheias de eólicas, e quase que não é possível em lado nenhum olhar à volta de um ponto alto, mesmo nos parques naturais, sem ver artefactos colocados bem diante dos nossos olhos nos últimos 20 anos. Já não sabemos, por exemplo, o que é uma noite escura, e por isso o espanto homérico com o céu e as estrelas é uma experiência que já "não nos assiste", para assentar os pés na terra em que verdadeiramente vivemos, a das trivialidades boçais.
Eu sei que uma parte desta destruição era inevitável e faz parte de um difícil trade-off entre a economia, fonte de riqueza, os recursos a explorar, e o ambiente, mas, como estamos a chegar aos limites de tudo - últimos vales, últimos montes, ultimas paisagens -, esse trade-off esgotou-se nas suas virtualidades, e é hoje uma desvantagem cujos custos se pagarão num futuro próximo. As crianças que hoje nascem vão viver num mundo dominado pela poluição luminosa, de caos urbanístico, construções clandestinas mal-amanhadas e sem paisagem natural. Nunca vão ver a Via Láctea a não ser em fotografias, não sabem o que é um vale selvagem de um rio a não ser nos filmes americanos, nunca cheirarão a urze, nem saberão o que é uma giesta, não terão o vento na cara no cimo duma montanha, sem este trazer a marca conspurcada do mundo de lixo que começa logo uns metros mais abaixo, nunca verão um carvalho, nunca comerão uma truta sem ser de viveiro, não saberão o que é o silêncio "habitado" que muda o coração dos homens que o sabem ouvir.
E, por isso, a sua relação com o mundo é, à partida, muito mais pobre e nunca compreenderão milhares de páginas da literatura da sua língua, nem Camilo, nem Eça, nem Aquilino, nem os poetas que falam de coisas que para eles são tão longínquas como ervas, arbustos, flores e frutos, que não estejam no hipermercado dos subúrbios. Estão a perder a língua, destruída alegremente entre os SMS e o Acordo Ortográfico, e a aumentar a geral dificuldade de leitura e compreensão de qualquer texto que tenha palavras que não constem do vocabulário gutural dominante.
A EDP, que nos saúda com uma nova imagem (quantos milhões gastos e para quê?) e com um slogan Viva a nossa energia!, será vendida em nome do fim do Estado na economia, a uma qualquer empresa estatal brasileira ou chinesa, que certamente se está nas tintas para o que resta de paisagem natural em Portugal. Quase que posso jurar que, nas conversas de gabinete que ninguém escrutina, e que acompanham a privatização, a nossa "flexibilidade" (uma palavra dos tempos de hoje) para acomodar o pacote de barragens está a ser valorizada para subir o preço da empresa. Entre elas está o vale do Tua.
Por isso, combater a barragem que destruirá o vale do Tua transformou-se numa luta de último recurso, uma última oportunidade para termos outra paisagem que não seja eucaliptal, albufeiras artificiais, praias sobrelotadas, montanhas esventradas por pedreiras, na maioria dos casos ilegais, mas a trabalhar diante dos olhos de todos há décadas, num Portugal já demasiado estragado.
Estamos pois numa última fronteira, se é que não a ultrapassámos já.
A EDP, que nos saúda com uma nova imagem (quantos milhões gastos e para quê?) e com um slogan Viva a nossa energia!, será vendida em nome do fim do Estado na economia, a uma qualquer empresa estatal brasileira ou chinesa, que certamente se está nas tintas para o que resta de paisagem natural em Portugal. Quase que posso jurar que, nas conversas de gabinete que ninguém escrutina, e que acompanham a privatização, a nossa "flexibilidade" (uma palavra dos tempos de hoje) para acomodar o pacote de barragens está a ser valorizada para subir o preço da empresa. Entre elas está o vale do Tua.
Por isso, combater a barragem que destruirá o vale do Tua transformou-se numa luta de último recurso, uma última oportunidade para termos outra paisagem que não seja eucaliptal, albufeiras artificiais, praias sobrelotadas, montanhas esventradas por pedreiras, na maioria dos casos ilegais, mas a trabalhar diante dos olhos de todos há décadas, num Portugal já demasiado estragado.
Estamos pois numa última fronteira, se é que não a ultrapassámos já.
(Versão do Público de 10 de Dezembro de 2011.)
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