sábado, 11 de março de 2017

Reflexão - LBC

A engenharia, a gravidade e os tempos

1-Creio fazer parte do senso comum, considerar a engenharia e a gravidade temas inseparáveis. Penso ser algo inquestionável, sobretudo - e aqui confesso e assumo a parcialidade -, se considerarmos a especialidade de engenharia civil. Não houvesse gravidade e a profissão de engenheiro teria, seguramente, outros contornos. Aliás, tê-los-à num futuro longínquo.

Mas a inexistência de gravidade é, para já, ficção científica. Um dia haverá, provavelmente, e noutro lugar certamente, que redescobrir a profissão. Mas esse dia ainda vem longe.

Já a gravidade das consequências da existência da profissão, e por muito que nos custe, acomete-nos diariamente, sempre em crescendo, na sociedade em geral, mas nos transportes, na construção, na saúde, no desporto, enfim, no nosso dia a dia.
Chegados a este ponto do nosso desenvolvimento, é paradoxal a forma como negligenciamos, cada vez mais, e conscientemente, questões que, num tempo anterior, e aqui sem querer ser nostálgico no sentido perjurativo, eram abordadas de forma distinta.
Não queria cair no lugar comum e lamechas do "dantes é que era bom". Não, não era. Mas algumas coisas eram melhores, sim. Creio que tem a ver, directamente, com a perda de valores, de disciplina, de hierarquia que, à data de hoje, e confrontados com os interesses materiais e com a avidez pelo imediatismo do resultado, se vão esfumando e extinguindo.
As novas tecnologias ou a propalada quarta revolução industrial deverão estar na origem dos novos tempos? Certamente que sim. Mas daí a erradicar tudo que está para trás não me parece racional.

Tomo dois exemplos: o desporto e a manutenção de equipamentos e infraestruturas

2-O que queremos hoje em dia com o desporto? Ver quem é efectivamente o melhor com a utilização, unicamente, das capacidades físicas de cada um? Ou, e na perspectiva sobranceira e interesseira de alguns conhecedores e das multidões que pagam, assistir a mais um "espectáculo"? Entenda-se aqui "espectáculo", não no seu sentido tradicional, mas enquanto veículo de consumo para gerar e girar dinheiro, com a participação voluntária, naif do povo.
E se se tiver de recorrer a outros estratagemas que não sejam os que decorrem do simples treino, pois que seja. 
Doping? Treinos em altitude? Transfusões de sangue? Tudo serve, enfim, para justificar o resultado e, claro, "o espectáculo". Pois é, é isto que se pretende, não o desporto, porque esse não traz rendimentos, esse desporto - o verdadeiro!-, já faz parte da História.
E aquele espectáculo começa, desde logo, por exemplo, nas cerimónias de abertura, sejam dos JO, ou de um qualquer campeonato de qualquer modalidade. Qualquer país organizador quer ser melhor do que o anterior. Mesmo caindo no ridículo de se ficar, depois, com instalações desportivas ao abandono, vulgo "elefantes brancos", ou cair no ridículo, como foi, a (falta de) organização nos jogos do Rio de Janeiro 2016, ou a construção de estádios para o Mundial em 2014.
Depois prossegue com a invenção de modalidades como, por exemplo, natação sincronizada ou ginástica acrobática. Ou com a  reinvenção de verdadeiras sub-especialidades como Volei de praia ou futsal. E o espectáculo continua; Continua com a reinvenção de Regras em modalidades existentes como o voleibol e futebol para as "adaptar aos tempos". E culmina com a olimpiarização de novas modalidades, que de espírito olímpico têm pouco, como  BTT, DMX,  karatê, ou escalada.  Reflicta-se com a alteração de regras de participação no atletismo; como é possível a participação de Oscar Pistorius? Se não é com o medo de "discriminação", só pode ser para o circo, perdão, para o espectáculo. Entretanto recua-se, sempre que se mete o pé na argola...
Assiste-se, assim, a uma pseudo-renovação consecutiva do espetáculo, não como um bem em si, mas para contento das multidões que consumística e carneiristicamente seguem os totens, matreiramente manobrados pelos sponsors.

Claro que ninguém fala que a obtenção de recordes nas modalidades raínha (atletismo, natação e ginástica desportiva) tende para uma constante. Ninguém se apercebe, ou quer falar, das assimptotas que constituem a quebra sucessiva de recordes nos últimos decénios. Ninguém fala na impossibilidade de continuar, nos moldes em que estão estruturadas algumas modalidades, a quebrar recordes e a alimentar o espectáculo.
Ninguém fala, enfim, do fim das capacidades humanas nos moldes e nos referenciais que tutelam, actualmente, as modalidades. Antes se procura, a qualquer custo, fazer render o modelo, modificando pontualmente os referenciais.
Mas o espectáculo, esse continua...
Até quando? Creio que, pela falta de capacidade crítica do ser humano e pela falta de memória, ad eternum...

3-Na criação de infraestruturas assiste-se, igualmente, não ao espectáculo na forma que se vê no desporto, mas numa outra cambiante.
Há décadas atrás, quando se comprava um carro, ou se concebia uma infraestrutura, tínhamos a noção da durabilidade desse bem. Havia uma vida útil que norteava a concepção. Existia um conforto pela durabilidade do bem, como, por exemplo, nos casos dos carros e aviões. Os interiores eram espaçosos e havia espaço.
Hoje em dia, os conceitos ou se alteraram, ou, mantendo-se, aumentaram o seu custo exponencialmente devido ao crescimento da população.
Um carro compra-se não para durar vinte ou trinta anos, mas para durar meia dúzia, não só porque os materiais estão programados para durar não mais de "x" anos, como a sociedade pretende-se de consumo. O estatuto, esse, claro, é diferente de quem troca de carro. É outra forma de gerar e girar dinheiro. É o deitar fora "o velho" (quase novo!) para comprar novo (semi-velho!)!

Já nas infraestruturas, a necessidade de ganhar dinheiro manifesta-se, mas de uma forma bem mais sinuosa, como se comprova, aliás, no dia-a-dia. 
Depois da concepção, vista cada vez mais "à vol d'oiseau" pela crescente desconsideração - profissional e económica -, de que é alvo, vem a parte da construção / execução, parte de leão, já que é aqui que se gere e gira a parte mais importante do bolo económico de todo o projecto. 
Dispensados de Responsáveis de Obra, ou de Projecto, os elementos seniores, por serem mais caros do que aqueles que chegaram recentemente à profissão, ou dos que procuram outra colocação mais apelativa, deixam-se os grandes interesses de quem chefia a execução, seja na óptica do promotor seja na do executor, liderar os processos de obra, remetendo para a manutenção e pós-venda questões fulcrais e determinantes da vida útil das infraestruturas. 
Negligencia-se e deprecia-se o conhecimento de quem teve a experiência de uma vida na efectiva realização de processos, na sua litigância, ou no seu aconselhamento. Poupam-se uns tostões, por oposição aos milhares que se hão-de gastar na fase de manutenção, seja para reparar ou refazer o que se não preveniu antes, seja, em casos extremos, para indemnizar terceiros por acidentes ocorridos na utilização.

Estamos numa fase da nossa civilização, em que o eficaz puro e duro, se sobrepõe a tudo, não olhando a meios. Não sei se já estivemos bem mais perto de outro caminho para uma vida mais equitativa para todos. Imagino que, por este, as discriminações e as desigualdades se irão aprofundar deixando, como é hábito, os mais fortes propagar as boas (?) novas.


Luiz Boavida Carvalho

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