Esta sexta-feira Roberto Roncon vai finalmente de férias. Depois de três meses de trabalho ininterrupto, vai ter quatro dias com a família. Coordenador do Centro de Referência de ECMO do Centro Hospitalar Universitário de São João, o médico já sabe o que vai fazer: dormir e jogar ténis. Não se queixa da intensidade do trabalho, diz que fez o que achou que devia fazer. Mas queixa-se da "inabilidade política" em não perceber que ignorar a dedicação e a qualidade do trabalho dos profissionais de saúde pode ter um grande custo no futuro. Reivindica respeito.
Numa conversa franca e longa com o Expresso, por videoconferência a partir do seu gabinete no São João, partilha os bastidores de um um desafio que ainda está longe do fim. Apesar da intensidade do desafio que a pandemia lhe colocou, aos 43 anos, diz que esta não foi, contudo, a sua maior experiência profissional. Ainda nada ultrapassa a introdução em Portugal, há dez anos, do projeto ECMO - equipamento de circulação extracorpórea, que permite dar tempo de recuperação a doentes em estado muito grave internados nos cuidados intensivos. Experiência que lhe serviu para, juntamente com a equipa hospitalar, alcançar resultados superiores aos de países mais desenvolvidos, com uma taxa de mortalidade entre 10 e 20% em doentes complexos.
Nos próximos dias, apesar de sair de férias, não poderá desligar o telemóvel. Com ele vai levar a preocupação com os casos pendentes que deixa no hospital e os receios de que a pandemia não passe de uma oportunidade perdida para reformar o Serviço Nacional de Saúde. Explica que teme que a resposta do SNS tenha sido tão positiva que até tenha ficado a ideia de que foi fácil. Mas não foi.
O que recorda do primeiro doente que vos chegou?
Lembro-me muito bem. Foi uma doente com insuficiência respiratória, um caso positivo, que até correu bem, porque não precisou ser entubada. Como sou coordenador da unidade, fiz questão de receber a doente com a enfermeira coordenadora, para dar o exemplo. Havia muito medo. Até porque a forma como foram desenhados todos os equipamentos de proteção individual não foi consensual, porque o que estava a ser pensado não era sustentável, não haveria equipamentos para todos e não era necessária toda aquela parafernália. Tínhamos a perceção que seríamos a unidade com mais doentes e sabíamos que íamos ser expostos a um grande número de doentes. Equipámo-nos à frente de toda a gente. A doente parecia uma relíquia. Ficou internada apenas uma semana, o que para um doente com covid é pouco. Foi uma situação muito pedagógica para a unidade.
Estava com o "fato de astronauta"?
Não, desde o início que não adotámos essa metodologia. Foi um assunto delicadíssimo, porque tínhamos uma visão diferente em relação aos outros serviços, que foram inflexíveis numa abordagem copiada do ébola. Criou-se um desconforto, porque não queríamos um hospital com dois padrões, mas se adotássemos o que estava a ser adotado não seria sustentável - e não há nada pior para a equipa do que mudar as regras a meio do caminho. O tempo veio a dar-nos razão. Se tivermos de ir à Lua de cada vez que queremos ver os doentes, afastamo-nos deles.
Quem tinha mais medo: os profissionais de saúde ou a doente?
Ela estava muito tranquila, o que nos ajudou. Explicámos a razão dos equipamentos para ela perceber que não estávamos daquela forma porque ela estava pior, que era para a nossa proteção. Não era nojo dela. Sentir a repulsa dos outros foi uma violência enorme para os doentes. É muito estigmatizante.
Mas era natural os profissionais terem medo. Alguma vez susteve a respiração?
Não, eu tinha uma enorme vantagem: tinha um plano pelo qual lutei muito. Tivemos cerca de 70 doentes graves e tivemos de traçar um plano, em que o primeiro aspeto era que, apesar da expansão de 26 para 40 camas - o que foi um crescimento brutal -, fiz tudo para manter a organização que já existia. A minha preocupação era como eu conseguiria crescer sem me desorganizar. Acredito muito no método.Tive a ajuda de anestesistas de outros serviços, que não eram intensivistas e por isso não eram médicos autónomos, mas eu estava todos os dias com eles.
Todos os dias?
Sim, trabalhei durante três meses todos os dias. Fiz o que achei que devia fazer.
Não teve folgas?
Não. Ia dormir a casa, exceto quando estava a fazer 24 horas. Permitiu-me, primeiro, que os médicos de fora se sentissem respeitados por estarem a trabalhar diretamente com o coordenador. E permitiu-me manter a organização das outras equipas. Tudo o que foi novo, foi da minha responsabilidade. Como coordenador, trouxe para mim tudo o que podia correr mal. E o que salvava vida dos doentes eram os tratamentos de suporte de cuidados intensivos.
Usaram medicamentos off label (utilizados fora da sua prescrição original)?
Sou presidente da Comissão de Farmácia e Terapêutica e sou muito conservador, porque estes medicamentos são acompanhados pelo aumento do risco de complicações. Nunca fui grande entusiasta da hidroxicloroquina ou do Rendesivir, mas estou curioso para conhecer os resultados da dexametasona.
Então, do que estamos a falar quando fala em tratamentos de suporte de cuidados intensivos?
Tivemos uma taxa de mortalidade cinco vezes inferior à da China, da Itália e de Manhattan. Não fomos os únicos a ter bons resultados, mas tivemos este mérito. A sociedade e a Direção-Geral da Saúde tiveram mérito porque as pessoas ficaram em casa e não atingimos a saturação dos cuidados intensivos. Tivemos uma grande sobrecarga mas não tivemos o caos. Um colega meu que trabalhou no Porto e está em Nova Iorque disse-me que um intensivista cuidava de 18 doentes. É impossível ter bons resultados assim. A maior parte das infeções víricas são tratadas dando tempo ao sistema imunitário para reagir à infeção e o que fizémos foi manter os sistemas vitais dos doentes para que o sistema imunitário conseguisse reagir à infeção.
Qual foi a vossa taxa de doentes por médico?
Um para cada dois, quatro e oito doentes, conforme fosse manhã, tarde ou noite. São os rácios recomendados. Mas isso depende de um enorme esforço de organização e à estratégia de eu ter ficado com os colegas de anestesia, com os doentes graves, mas não os de ECMO. Houve um duplo controlo.
Vocês aplicaram aos doentes com covid, nos cuidados intensivos, o mesmo racional que aplicavam aos doentes de ECMO: deram-lhes tempo.
Exatamente. Criámos as condições para que o sistema imunitário do indivíduo conseguisse reagir à infeção. Isso parece fácil, mas é muito difícil. O grande esforço foi para manter a calma, a organização e fazer bem o que sabíamos fazer bem. O nosso grande desafio era que o doente ultrapassasse a fase crítica na melhor condição possível. Ainda hoje teve alta um doente que esteve connosco três meses. Um doente de 66 anos que esteve dois meses e meio na ECMO e está muito bem. Parte do nosso plano foi não fazer o que foi feito na China e na Itália. Nós não queríamos o caos. Acreditámos na força do método e tivemos uma grande humildade.
Mas também tiveram uma grande ousadia, porque no início, não havia experiência e quiseram fazer diferente do que estava a ser feito.
Tem razão. Não foi fácil. Desde que sou coordenador da unidade, sempre que toca o telefone, penso: "o que correu mal?". Desde que sou coordenador, deixei de receber telefonemas para coisas boas, só para as más. Mas a equipa que trabalhava comigo já me conhecia e acreditava no método. Mas não foi fácil no meio de tantos pavões e autoridades de saúde... Eu tinha colegas que diziam que não valia a pena colocar os doentes em ECMO, mas o que eu posso dizer é que tive 16 doentes com covid em ECMO e só morreram dois. Veja a diferença entre 90% de mortalidade e 90% de sobrevivência. É preciso ter uma couraça muito forte, acreditar na força do método e ter muita humildade. Não era por estarmos numa pandemia que o método científico mudava.
Se houver uma segunda vaga, vão continuar a aplicar este método que deu resultados positivos?
Está a fazer-me uma pergunta muito difícil. Vou responder apenas por mim, nem pela minha equipa, nem pelo hospital. Tem havido aqui um grande problema de sensibilidade, de bom senso até. As três grandes figuras do Estado português reuniram-se para celebrar a vinda de uma competição desportiva para Portugal e o primeiro-ministro disse que era um prémio para os profissionais de saúde. Não foi dito com má fé, mas é de uma infelicidade total. E não pediu desculpas, o que dói mais. Dois dias depois, foi o Dia Nacional do Médico e ninguém se reuniu. Na Alemanha vão aumentar o salário dos médicos, em França dar um prémio. Garanto-lhe que o que fiz não foi para ganhar uma medalha, ter mais dinheiro ou para ter um prémio, mas as pessoas também precisam de coisas simbólicas. Porque não dão aos médicos e enfermeiros que estiveram na linha da frente um dia de férias? O dinheiro não é tudo, mas estamos tão cansados que tenho algum receio que toda a energia e boa vontade que tivémos na primeira vaga possa não existir na segunda. Porque na verdade, a comunicação destes poderes tem sido calamitosa. Aquelas conferências de imprensa diárias são calamitosas. E o primeiro-ministro perdeu uma boa oportunidade para estar calado.
O que sentiu quando a ministra da Saúde disse que o medo era o nosso maior inimigo?
A ministra tem um problema enorme de empatia com as pessoas. Não acho que um ministro tenha de ser médico, mas nestas alturas nota-se mais a falta de contato humano. As conferências de imprensa caíram um bocado em descrédito porque no início não era preciso máscara, depois era. Fiquem em casa, depois saiam. Em grande medida, o que eu tenho aqui na minha unidade é o que não está a funcionar nestas conferências de imprensa. Neste momento estão a ser uma oportunidade perdida. E se começar a correr mal, não vai haver responsabilidade política, as pessoas é que se terão portado mal. E se queremos falar aos jovens, se calhar não é através de uma conferência de imprensa, mas do Youtube, do Facebook, da linguagem que eles conhecem. Têm de colocar jovens a falar com outros jovens. Sem estar a apontar o dedo, se não eles ainda nos desafiam mais.
Sentiu medo nos jovens internados na sua unidade?
Foi a unidade com mais jovens porque, como tínhamos o ECMO, a maior parte deles vinham cá parar. Por acaso, nenhum destes jovens morreu, ainda temos um ligado, não o posso considerar como tendo ultrapassado. Mas quando um jovem morrer, perde-se esperança. Mesmo para nós é violento.
E foi violento para vocês ver os idosos a morrerem?
A solidão das mortes sem visitas foi uma violência. Um dos poucos consolos que temos é morrermos com a nossa família e isso não pôde acontecer. É triste, mas eu estava muito focado. Não se podia aligeirar uma coisa que mata, que dá cabo da economia. Mas para nós não foi tão mal porque tínhamos um plano. As pessoas que ficaram em casa acabaram por sofrer mais porque ver o telejornal era um massacre.
Não via as notícias?
Via, mas estava tão cansado que dormia no sofá. E no outro dia tinha sempre que fazer. Como estava muito focado no plano, acabava por sofrer bastante menos.
Temos mais de 1500 mortos. Todos sem nome ou cara. Para vocês é uma defesa?
Não, eu lembro-me de todos os doentes que morreram. Posso dizer porque morreram, o que eu podia ter feito melhor. Alguns morreram nas primeiras duas semanas e talvez pudessem ter sobrevivido se tivesse mais experiência.
Quando viram que o vírus não afetava apenas os pulmões, mas o coração e os rins, foram adaptando o plano?
O nosso plano era de aprender mais com os doentes do que com a doença. Conhecíamos muito pouco a doença e acho que a continuamos a conhecer pouco. Não se pode conhecer uma doença com menos de um ano de duração, quem diz o contrário está a mentir. Então, para tratar do meu doente, tenho de estar muito atento a ele, porque ele é que vai dizer como tem de ser tratado. Claro que nos fomos adaptando. Eles morriam não de SARS CoV-2, mas de uma superinfeção bacteriana.
Tiveram doentes lúcidos que não correspondiam ao que viam nos exames?
É preciso ter muito cuidado. Algumas coisas que foram ditas não foram muito abonatórias. Não é verdade que a covid-19 dá muitos maus exames e as pessoas não parecem estar tão doentes. O que nos aconteceu foi exatamente o contrário. Alguns vieram muito tarde para os cuidados intensivos. Temos de ter muito cuidado. Qualquer generalização com esta doença que é tão desconhecida é insensata. Devo ter sido das pessoas que mais viu esses doentes em Portugal e continuo a dizer que tenho imensas dúvidas.
Assistindo ao atual aumento de casos e pensando no inverno, o plano será o mesmo?
O inverno preocupa-me. Nós estamos cansados, foi de uma violência atroz, e não estamos a ver no poder político o reconhecimento - e não estou a falar de dinheiro ou a falar só por mim. A frase do primeiro-ministro foi de uma infelicidade enorme e foi dita por um arauto do SNS. O cinismo é pior do que a hipocrisia. Dizer que o SNS é muito importante mas fazer declarações que dão a entender que o nós fizemos não foi mais do que a nossa obrigação não é verdade. O que nós fizemos não é normal, está para lá do que é previsível. O que nós estávamos à espera era de um mínimo reconhecimento. Por exemplo, eu gostava que a minha unidade tivesse um vestiário. De ao fim de 15 anos de especialidade poder ter uma carreira. É isso que nós queremos, não queremos medalhas. Ou seja, por um lado, as pessoas estão cansadas e um bocadinho sentidas. Se tivermos o vírus a circular no meio a um inverno normal, vamos ter de ter no hospital um circuito covid e outro não-covid, numa altura de grande pressão dos serviços, quando a atividade normal já tiver sido retomada. Porque não nos podemos esquecer que o que fizémos até agora foi com a atividade normal parada e sem o inverno. Tenho, portanto, alguma preocupação e acho que devíamos preparar-nos bem para o inverno. Tenho dificuldade em contratar médicos e em fazer horários. Aquelas declarações do Dr. António Costa custam, representam um virar de página, como alguém que já está noutra onda. Mas se calhar, é um bocadinho cedo para virar a página. Nós estamos cansados, é verdade, o inverno vai ser difícil, o SNS não passou a estar bem, eu continuo com dificuldades para várias coisas básicas. Só agora recomecei a dormir melhor.
Levava a covid para casa?
Sim. E mais, houve outra coisa complicada: houve colegas que se afastaram das famílias, eu continuei a viver em casa. Mas custava-me chegar e sentir a ansiedade da minha família.
Tinham medo de si? Viu medo nos olhos dos seus filhos e da sua mulher?
Claro que sim. E eu também tinha medo de lhes fazer mal, como é evidente.
Como lidou com isso?
Com alguma tristeza. Porque queria chegar a casa e abraçar os meus filhos. Tenho uma vida muito feliz, em termos familiares e profissionais. Esta fase tirou-me algumas das coisas mais importantes, como estar com os amigos, mas mesmo isso não custou assim tanto porque eu estava a fazer o bem, o que é muito importante e porque sabia que não era para sempre.
Ficou com sequelas? Mudou comportamentos e atitudes?
Acho que não. Mas, pela primeira vez na minha vida, sinto um enorme cansaço. Até nem era para tirar esses dias de férias, mas tirei, porque estava com uma exaustão. Nisso mudei.
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