terça-feira, 22 de setembro de 2020

Reflexão - António Barreto

António BarretoAntónio Barreto
 
Ruptura e cooperação
 
É possível imaginar cooperação com autonomia, com vontade e escolha, não com submissão. Na verdade, o primado ao afrontamento conduz à submissão, à autoridade e ao despotismo.
20 de Setembro de 2020
O século XXI começou mal para Portugal. Ocorreu uma rara coincidência de desastres, de erros e de dramas. Vinte anos sem crescimento económico revelam uma economia que cresceu menos do que a UE e muito abaixo da maioria dos países da Europa central e de Leste. Uma crise financeira mundial, a que se acrescentou uma crise da dívida soberana particularmente severa, deixou Portugal em estado miserável, à beira da bancarrota. A maior vaga de corrupção e de nepotismo da história recente varreu o país durante dez a vinte anos. Os governos de Sócrates traduziram-se num dos maiores incentivos ao desgoverno e à corrupção de toda a história de Portugal. A falência da banca portuguesa enfraqueceu o país e a sociedade para lá de todos os limites, com consequências graves para a poupança, a evasão fiscal e a fuga de capitais. O maior assalto ao património público e nacional processou-se nestes anos, com a fragmentação predadora e a demolição deliberada das melhores empresas nacionais públicas e privadas. O pesadelo do BES, com foros de crime, deixa atrás de si destruição, roubo e desconfiança de infinitas proporções. Apesar de necessária e urgente, a assistência financeira internacional, o resgate e a austeridade deixaram um país exangue. Os incêndios de floresta, com incalculáveis prejuízos e assustadores números de vítimas mortais, revelaram, nestas duas décadas, uma fragilidade essencial que o Estado e a população parecem incapazes de mitigar. A pandemia sanitária e a crise económica e social, finalmente, ameaçam deixar o país num estado de vulnerabilidade jamais visto.



É nestes momentos que se pensa em soluções, em métodos de trabalho colectivo e em comunidade de esforços. É nestes momentos que se pensa na indispensável associação dos indivíduos, das comunidades e do Estado, ao mesmo tempo que se olha com ansiedade para as liberdades e a democracia, que nada justifica que se coloquem entre parêntesis ou se diminuam.



As nossas tradições não favorecem a cooperação. Ou antes, não constituem fundamento e exemplo para a colaboração. Na vida política portuguesa, não há muitos exemplos de cooperação. O que é realmente tradicional é o afrontamento e a ruptura. A cultura do afrontamento e da rivalidade sobrepõe-se a todos os outros princípios. O hábito do afrontamento arreda a cooperação e a colaboração. Estas são vistas como submissão ou unanimidade autoritária. Cooperação e colaboração são sempre encaradas como cedências, perda de autonomia e ausência de liberdade crítica. Ora, nem sempre são. É possível imaginar cooperação com autonomia, com vontade e escolha, não com submissão. Na verdade, dar o primado ao afrontamento conduz à submissão, à autoridade e ao despotismo.



É de lamentar que o conflito irredutível e a ruptura tenham sido transformados em valores maiores da sociedade política. Há uma profunda e arreigada cultura política contra a cooperação e a colaboração. É uma constante histórica em Portugal. Romper com o passado. Derrubar instituições. Prender pessoas. Fechar empresas. Expropriar proprietários. Sanear funcionários. Deportar cidadãos. Os séculos XIX e XX foram pródigos e férteis. Todos os vencedores momentâneos ou temporários sentiram-se na necessidade de matar, esfolar ou deportar os vencidos. Monárquicos, absolutistas, liberais, ordens, sacerdotes, conventos, republicanos, fascistas, comunistas e socialistas: todos foram, à vez, afastados, presos ou exilados, para depois se dedicarem a fazer o mesmo aos seus adversários. A História de Portugal destes últimos séculos é uma sangrenta ou violenta história de golpes políticos e militares, de revoluções, de guerras civis, de prisões e deportações, de roubos e esbulhos. Nem a revolução democrática de 1974/75 escapou às tradições. Ou antes, apesar de ser diferente, pois não criou exilados nem deportados, presos ou banidos, não deixou de destruir empresas e grupos económicos, arrasar a iniciativa privada e nacionalizar grande parte da economia — no que foi tão devastadora quanto outras revoluções anteriores de esquerda ou de direita.
Ruptura e terra queimada: eis as razões para a inexistência ou a fragilidade das instituições. Aqui estão as causas das mudanças de famílias e de clientes. De saneamentos. De corrupção. De nepotismo. Aqui se encontram as origens da “confiança política”, um dos piores traços da vida pública portuguesa, que mais não é do que um salvo-conduto para legitimar o favoritismo, a partidocracia, o nepotismo e a corrupção!



Serão a liberdade e a democracia suficientes para sugerir soluções de governo e de estabilidade para os próximos anos, que se anunciam de excepcional dificuldade? Serão capazes de gerar os tão necessários esforços comuns? Por outras palavras: poderão as esquerdas democráticas e as direitas democráticas encontrar terreno sólido para negociar e cooperar, deixando de fora as esquerdas não democráticas e as direitas não democráticas? Serão as esquerdas e as direitas democráticas capazes de impedir o regresso vingativo das esquerdas radicais não democráticas e de prevenir a ascensão ameaçadora das direitas radicais não democráticas?



A alternativa ao esforço comum é clara: guerra política, classe contra classe, ideologia contra ideologia. Em palavras mais claras: esquerda contra direita. Para ser concreto, toda a esquerda, democrática e não democrática, contra toda a direita, democrática ou não democrática. O centro será assim estilhaçado, dissolvido e desfeito nas grandes vagas da alternativa radical, sonho dos revolucionários, desejo dos justicialistas e obsessão dos populistas.
É o que vulgarmente se chama “polarização”. Teremos, de um lado, o império do Estado social, o Estado patrão omnipresente, a nacionalização de todos os sectores ditos “estratégicos” e dos serviços de Educação, Saúde e Segurança Social. E teremos, do outro lado, o Estado social fraco e frágil, ao lado das armas dos poderosos da economia. Será o reino dos oligopólios e dos monopólios, com uma economia liberal, quando tal se opuser ao mundo do trabalho, e uma economia corporativa, quando for da conveniência dos mais fortes.



Pela história e pelo passado recente, estamos avisados. O que faz crescer a extrema-direita antidemocrática não é a democracia, é a fraqueza dos democratas. Como o que incentiva a extrema-esquerda antidemocrática não é a liberdade, são os erros da democracia.

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