O Governo aceitou, finalmente, que não existe alternativa para Portugal mas assumir a bitola UIC (vulgo bitola europeia) e que as tecnologias alternativas que o Governo dizia existirem eram imaginação dos governantes, acabando agora por darem razão aos críticos que publicaram o Manifesto da “Ilha Ferroviária”. Ora, com esta vitória, porque será que não estou satisfeito?
1. É fácil de explicar. Como sempre, o Governo não tendo uma visão estratégica integrada dos problemas e não tendo ministros com a experiência necessária, decide o que fazer de acordo com as opiniões que lhe são vendidas por conselheiros, os quais são assessores de empresas com interesses diversificados, de que resultam com frequência contradições graves. São exemplos disso o porto do Barreiro, o aeroporto do Montijo, a linha circular do Metro e a bitola ibérica na ferrovia. Estou a esquecer os erros anteriores de José Sócrates.
2. Na ferrovia, havendo interesses ligados à manutenção da bitola ibérica – Medway, empresas de engenharia, construção civil, vendedores de material ferroviário –, o Governo optou por construir a ferrovia por duas vezes, numa primeira fase em bitola ibérica e numa segunda oportunidade em bitola UIC. Que isso custe muito mais dinheiro parece não ser um problema, já que representa mais negócio para os consultores e as empresas envolvidas. Uma outra explicação reside na possível existência de um acordo secreto entre António Costa e a Medway para manter a bitola ibérica durante um certo prazo, a fim de permitir rentabilizar a compra da CP Carga.
3. Perguntemo-nos agora: o que pode justificar o Governo insistir na bitola ibérica, nomeadamente em linhas novas e em traçados do século XIX, quando todos os países europeus que tinham outras bitolas, nomeadamente os nossos vizinhos espanhóis, optaram pela coexistência das duas bitolas no seu território e Portugal decidiu perder mais dez anos com o devaneio de manter a bitola ibérica nas novas linhas? Ou o que pode justificar construir uma linha de Lisboa ao Porto (parte do Corredor Atlântico) por fases e condicionada pelo traçado existente? Ou o que pode justificar o Governo não dar prioridade às mercadorias ou a linhas polivalentes para passageiros e mercadorias?
4. Por alguma razão o Governo omite sempre parte da informação pertinente. Omite a questão da ligação à Europa, o Corredor Atlântico, a próxima liberalização do mercado ferroviário e as alterações que isso implica nos transportes de toda a Europa. Também não fala do futuro do transporte rodoviá-
rio, no contexto da descarbonização e da utilização das energias fósseis. Ou o que fazer com o transporte de camiões em plataformas ferroviárias que, a meu ver, será o futuro. Mais, um Governo que se proclama de moderno foi desenterrar, mal, decisões com vinte anos, recusando-se a olhar de forma integrada o futuro dos transportes na Europa. Por exemplo, o que pode justificar gastar dinheiro para soluções até 2030, bitola ibérica, para rever dentro de dez anos? Investimentos como estes fazem-se para um mínimo de cinquenta anos e não para dez.
5. A confusão que vai no Governo é evidente. Acabo de ler que a ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, disse o seguinte: “A nossa prioridade não é a ligação entre Madrid e Lisboa. Já temos ligação. Porque de Madrid para Lisboa vamos de avião. A nossa prioridade, certamente, é o eixo Atlântico, Lisboa, Porto e Vigo”. A seguir declarou não aceitar imposições de Espanha. Saberá a senhora que, de acordo com a União Europeia e o Dr. António Costa Silva, o avião vai desaparecer para distâncias até mil quilómetros? Saberá ela que, podendo concordar-se em não aceitar imposições de Espanha (que de facto o Governo anda há anos a aceitar), existe uma coisa chamada negociações e que hoje somos um País da UE, para o poder fazer em Bruxelas?
6. O ministro Pedro Nuno Santos também entrou no debate e declarou:” A ligação de alta velocidade será a Norte, por Vilar Formoso, muito provavelmente. O que o Governo português não quer é que a solução seja imposta. Foi isso que transmitimos na cimeira ibérica, e isso é muito importante”. Saberá o ministro que aceitámos a ligação a Sul durante o Governo de Durão Barroso, que essa ligação começou a ser posta em prática pelo socialista José Sócrates e que o seu próprio Governo está a construir a ligação, ainda que em bitola ibérica e em via única, a Sul por Beja? Qual a vantagem de criar mais confusão e mais indefinição sobre o que queremos?
7. A declaração mais saborosa sobre a ferrovia pertenceu, contudo, ao Primeiro-Ministro, quando disse: “Espero que (este enorme esforço de investimento) seja uma forma de fortalecer a nossa indústria de construção”.
Destas declarações a conclusão parece óbvia, cada governante fala do que lhe vai na alma. Ana Abrunhosa acha que as decisões devem ser locais, um absurdo quando se trata de decisões estratégicas para cem anos. Pedro Nuno Santos pensa em concorrer para secretário-geral do PS e dá jeito ser o durão da esquerda e vamo-nos a eles, os espanhóis. António Costa, que tem a responsabilidade das finanças do partido, pensa na construção civil. Infelizmente, nenhum deles sabe do que fala e o desastre dos investimentos públicos, ferrovia incluída, aí estão para o atestar. Até quando?
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Quando há vinte anos comecei a escrever sobre a ferrovia, as minha ideias eram claras. Em primeiro lugar, a oportunidade única de fazer depender a Galiza do aeroporto Sá Carneiro e a economia galega do Norte de Portugal. Passaram vinte anos e foram os espanhóis que fizeram o inverso, levando o Corredor Atlântico até à Galiza, ao ponto de António Costa aconselhar os habitantes de Trás-os-Montes a aproveitarem o comboio espanhol que passa a poucos quilómetros da fronteira. A minha segunda prioridade era a ligação do Norte e Centro de Portugal à Europa para mercadorias, mas sem passar por Madrid, seguindo a opção dos nossos antepassados, de ligação directa a Irún. A terceira prioridade era a ligação de alta velocidade (300/350 quilómetros por hora) para passageiros de Lisboa à região Centro e daí por Cáceres para Madrid, não por Badajoz. Para mim, a razão era clara, ligar os dois maiores centros urbanos da península, Lisboa e Madrid (ficando assim construída metade da ligação de Lisboa ao Porto) e reduzir a dependência do Centro e do Norte relativamente a Lisboa, alargando o mercado da nova linha e, de alguma forma, reforçar a autonomia de Lisboa em relação a Madrid.
A ministra Ana Abrunhosa tem alguma razão em recuperar a estratégia do ex-ministro João Cravinho de reforço do poder político e económico da costa atlântica portuguesa, cujo centro é Lisboa, como a melhor defesa contra a atracção de Madrid. Só que fez uma má digestão de uma boa ideia, para a qual não está, obviamente, preparada. Como diz o povo, cada macaco no seu galho.
Infelizmente, esta alegoria é extensiva a todo o Governo e em particular ao Primeiro-Ministro. Não existe neste Governo do PS um único pensador com tarimba estratégica e, como escrevi antes, estão dependentes de assessores e conselheiros com interesses divergentes. Trata-se de um problema que só a mudança de Governo resolve.
Nota: O Governo trata sempre os investimentos públicos como despesa e nunca fala do que cada investimento pode acrescentar em receita. Porque será?
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