Se bem me lembro, durante muito
tempo, vigorou a crença de que a
democracia gerava as soluções
para todos os problemas ou
dificuldades que ela própria
criava. Era uma espécie de regime
mágico. Esta crença esfumou-se como se
esfumam nuvens passageiras ao fim da
tarde. Hoje em dia, prevalece o receio e o
cepticismo. A quantidade de escritos —
artigos e livros — a expor as tremendas
mazelas da democracia contemporânea,
publicados em vários países, é
impressionante. Quem os leia, ou quem leia
alguns deles, mergulha na depressão. Hoje
em dia, a democracia parece um carro
encravado, um sistema político que não
resolve os problemas concretos das
sociedades e, pior do que tudo, incapaz de
se reformar a si próprio de modo
satisfatório. Em parte, mas uma parte
menor, a insatisfação contemporânea deriva
de que as exigências são imensas, de toda a
ordem, e impossíveis de satisfazer. Da
igualdade de género à habitação gratuita,
não há nada que não se reivindique. Mas há
pelo menos uma reivindicação plausível,
razoável, legítima, que é a simples
reivindicação de um governo decente, isto é,
que assuma as suas responsabilidades, que
não seja conivente com negócios
obscuríssimos, cujos membros não sejam
recompensados por olearem essas
negociatas infames, que pensem no bem
público antes de pensarem nos interesses
dos partidos. Será pedir demais? Parece que
sim. Portugal é hoje em dia uma “choldra”
ou uma “piolheira”, como consta que se
queixava D. Carlos, conforme os dias, nos
sinais da monarquia.
O cidadão vê ou lê as notícias e fica com a
justificada sensação de que estamos num
lamaçal manhosamente resguardado por
uma classe política que dele se aproveita.
Claro que paga o justo pelo pecador, mas
isso é a vida… Esse lamaçal assalta a bolsa
dos contribuintes sem dó nem piedade. Ele
são aos milhões para bancos e empresas
fraudulentamente falidas, cujos gestores
têm o descaramento de atribuírem a si
mesmos prémios de gestão que nós
pagamos! A própria ordem pública, como
escrevia António Barreto neste
fim-de-semana, parece mais dependente da
Igreja Católica e dos sindicatos do que da
autoridade do executivo. Nada disto impede
o primeiro-ministro de proclamar que tem
um ministro da Administração Interna
maravilhoso e que por nada deste mundo o
substituiria: Eduardo Cabrita — Cabrita! —,
imagine-se, é “um pilar fundamental” do
Governo! Está tudo dito.
Olhemos para a Assembleia da República
um órgão acometido de anemia aguda, um
rebanho de ovelhas amestradas pelo
Governo, que é o dono da maioria. Duzentos
e trinta deputados cuja utilidade não se
vislumbra: são sempre os mesmos a falar.
Porquê? Porque uma grande parte não tem
nada na cabeça que os inspire, outros
porque não são convenientemente
alinhados e são, por isso, silenciados. Esta
censura — que de censura se trata — é
comum a todos os partidos. Este é o ponto
mais grave: os partidos instauraram um
sistema de “disciplina” interna que coarcta
qualquer veleidade de uma opinião própria.
Tornaram-se há muito blocos monolíticos
sujeitos à ditadura do leader, protegido e
acolitado pela sua guarda pretoriana. São
agrupamentos de gente que ou é ou aceita
cingir-se acéfala, para agradar ao chefe e não
ser ostracizada. São também agências de
emprego, antros de nepotismo, algares de
cumplicidades inconfessáveis.
Quem acredita ainda que a democracia é
“o governo do povo pelo povo” (e para o
povo)? Alguns ingénuos, possivelmente. A
Democracia tornou-se um regime oligárquico
que governa para a oligarquia que a capturou.
Esta é a verdade pura e crua. Erra quem
pensa que o mal está nos eleitores, que
fariam escolhas erradas. Os eleitores
escolhem em função da oferta que se lhes
apresenta, e essa oferta é muito pobre e
piora de geração em geração. Os eleitores,
coitados, têm de escolher entre o que os
partidos lhes oferecem. E oferecem-lhes o
mérito, o patriotismo, a honestidade e a
decência? Não. Oferecem-lhes a
mediocridade (técnica e política), a
subserviência, a falta de escrúpulos, o
seguidismo acrítico, e tantas vezes —
demasiadas vezes — a ganância pessoal.
Grande parte deste seguidismo, ou da
facilidade com que os estados-maiores dos
partidos o conquistam, tem razões
sociológicas. Um professor liceal que vive há
anos no absoluto anonimato de uma terra de
província, ainda por cima mal pago, acha-se,
quando se vê sentado em São Bento com um
ordenado duplicado, como César depois de
ter passado o Rubicão. Atingiu a glória, e por
nada deste mundo quer voltar ao apagado e
vil viver de quando ensinava Geografia aos
alunos de Freixo de Espada à Cinta:
aprovará o quer que lhe mandem pensar.
Tanto basta para que se mantenha fiel e
cordato.
Não vejo como se possa sair deste círculo
vicioso: votamos obrigatoriamente nos
nossos algozes. Isto tanto vale para a
esquerda como para a direita: a natureza e o
funcionamento dos partidos são iguais,
mesmo que as ideologias divirjam. É caso
para perguntar: “Que fazer”? Infelizmente,
não me parece que exista solução. A
democracia não é capaz de vencer os seus
próprios demónios. Nos tempos que
correm, corrompe os homens que a dirigem
— ou são os homens que a corrompem a ela?!
— e acabou a fazer da classe dirigente uma
trama inextricável de cumplicidades que
impedem em absoluto a sua regeneração, o
que talvez devesse começar pelo
apuramento da verdade e cobrar
responsabilidades. Terá chegado a altura de
pensar uma alternativa à democracia?
Chegou sem dúvida, mas essa alternativa
não existe sequer teoricamente. Qual seria o
desenho de um regime
que nos desse liberdade, um Estado de
direito e um Estado social? Não faço ideia.
Ilude-se quem pensa que a regeneração da
democracia depende da bondade dos
homens. No estado a que chegámos, é o
sistema que está doente e esgotado. A
lamentável impotência da Justiça talvez seja
a sua nódoa mais negra e o mais alarmante
sintoma da degenerescência.
No século XVIII, o Iluminismo forneceu as
ideias que permitiram opor ao absolutismo
monárquico um regime constitucional,
liberal e democrático. Essas ideias
cristalizaram como um horizonte de
possibilidades alternativas. Nós não temos
nada disso
Comentário (Rui LM)
Uma reflexão honesta.
Talvez demasiado derrotista. Não induz a busca de uma alternativa, mas quase postula a inevitabilidade do modelo actual.
E não é disso que os cidadãos que ainda restam necessitam.
A democracia representativa ou representada não passa de um esquema intencionalmente fraudulento no qual se convence um incauto de que pode e deve confiar na bondade da representação que lhe propõem.
Basta que confie no momento da delegação (do voto), depois... ao longo do mandato não volta a intervir no processo.
Desde a eleição do palhaço-mor aos "arrumadores", entenda-se poder local.
Depois... tudo funciona na obscuridade, dos negócios às nomeações, com mentiras, meias verdades ou mesmo declarações no âmbito de segredo de (mau) estado.
É absurdo, mas o rebanho já aceitou a ideia de que há segredos que só os artistas do circo devem conhecer, mesmo que isso signifique convidarem-no para assistir ao espetáculo e acabarem numa câmara de gás. Os próximos convidados não se preocuparão em questionar onde estão os anteriores convidados, na euforia de os deixarem "ir ao circo" também.
É o modelo desta democracia.
Todos devem ter o direito de ir ao circo, mesmo que acabe na câmara.
Nada de novo, e a memória é curta ou é longa a ignorância.
Ler o programa escolar sobre a idade contemporânea no ensino, é revoltante.
A intoxicação, desinformação e omissão objectiva de factos históricos é revoltante.
Levas um rebanho a pastar, a beber, de regresso ao redil. E ele segue-te.
Quando o levares ao matadouro, vai continuar a seguir-te.
Mas é do que o rebanho gosta. Geralmente, até ser demasiado tarde.
Se há alternativa?
Naturalmente que sim.
A democracia natural. A da manifestação, permanente e actual, da vontade de uma nação em todas as matérias de governação que não se encontrem programadas e delegadas.
Sempre que seja (e qualquer que seja) necessário propôr uma medida, não meramente conjuntural mas estratégica, que não se encontre previamente inscrita num programa de governo, é submetida a sufrágio (referendo). Exemplos? Nacionalização da TAP, da GALP, injecções de capital na banca, acordos ortográficos, gestão da saúde pública, acabar com os livros no sistema educativo, impôr um registo magnético de vacinação (o próximo será o chip)... continuamos?
É um processo moroso?
Não, se antecedido por debate público honesto e objectivo, é o tempo necessário para colocar uma cruzinha.
É um processo dispendioso?
Não. Há orgãos de comunicação já assalariados, e mesmo estatais para a dinamização desse debate.
Por outro lado, não percebo como se aceita a nomeação para cargos administrativos sob fundamentação de "confiança política". Quem inventou o conceito, teve uma ideia brilhante.
A vantagem funcional e primária estaria no exercício de uma governação previamente programada e sufragada.
Mas, a verdade, é que o clientelismo já era uma norma no Império Romano. E implodiu quando deixou de chegar (em termos razoáveis) para todos, ou quando foi apercebido pelos "esmagados" que afinal era um gigante com pés de barro.
Nada de novo.
A caça já abriu na Europa civilizada, esperemos que chegue ao Ocidente.
A propósito, achei divertido o resultado das últimas eleições em Espanha e a forma ridícula como a comunicação social cá do burgo (especialmente os troca-tintas assalariados) comentaram o resultado.
Temos eleições daqui a uns meses, esperemos para ver.
Abraço, Companheiro.
LM
Aprovado!!!
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