quarta-feira, 26 de maio de 2021

Reflexão - Mª. Fátima Bonifácio

 

Se bem me lembro, durante muito

tempo, vigorou a crença de que a

democracia gerava as soluções

para todos os problemas ou

dificuldades que ela própria

criava. Era uma espécie de regime

mágico. Esta crença esfumou-se como se

esfumam nuvens passageiras ao fim da

tarde. Hoje em dia, prevalece o receio e o

cepticismo. A quantidade de escritos —

artigos e livros — a expor as tremendas

mazelas da democracia contemporânea,

publicados em vários países, é

impressionante. Quem os leia, ou quem leia

alguns deles, mergulha na depressão. Hoje

em dia, a democracia parece um carro

encravado, um sistema político que não

resolve os problemas concretos das

sociedades e, pior do que tudo, incapaz de

se reformar a si próprio de modo

satisfatório. Em parte, mas uma parte

menor, a insatisfação contemporânea deriva

de que as exigências são imensas, de toda a

ordem, e impossíveis de satisfazer. Da

igualdade de género à habitação gratuita,

não há nada que não se reivindique. Mas há

pelo menos uma reivindicação plausível,

razoável, legítima, que é a simples

reivindicação de um governo decente, isto é,

que assuma as suas responsabilidades, que

não seja conivente com negócios

obscuríssimos, cujos membros não sejam

recompensados por olearem essas

negociatas infames, que pensem no bem

público antes de pensarem nos interesses

dos partidos. Será pedir demais? Parece que

sim. Portugal é hoje em dia uma “choldra”

ou uma “piolheira”, como consta que se

queixava D. Carlos, conforme os dias, nos

sinais da monarquia.

O cidadão vê ou lê as notícias e fica com a

justificada sensação de que estamos num

lamaçal manhosamente resguardado por

uma classe política que dele se aproveita.

Claro que paga o justo pelo pecador, mas

isso é a vida… Esse lamaçal assalta a bolsa

dos contribuintes sem dó nem piedade. Ele

são aos milhões para bancos e empresas

fraudulentamente falidas, cujos gestores

têm o descaramento de atribuírem a si

mesmos prémios de gestão que nós

pagamos! A própria ordem pública, como

escrevia António Barreto neste

fim-de-semana, parece mais dependente da

Igreja Católica e dos sindicatos do que da

autoridade do executivo. Nada disto impede

o primeiro-ministro de proclamar que tem

um ministro da Administração Interna

maravilhoso e que por nada deste mundo o

substituiria: Eduardo Cabrita — Cabrita! —,

imagine-se, é “um pilar fundamental” do

Governo! Está tudo dito.

Olhemos para a Assembleia da República

um órgão acometido de anemia aguda, um

rebanho de ovelhas amestradas pelo

Governo, que é o dono da maioria. Duzentos

e trinta deputados cuja utilidade não se

vislumbra: são sempre os mesmos a falar.

Porquê? Porque uma grande parte não tem

nada na cabeça que os inspire, outros

porque não são convenientemente

alinhados e são, por isso, silenciados. Esta

censura — que de censura se trata — é

comum a todos os partidos. Este é o ponto

mais grave: os partidos instauraram um

sistema de “disciplina” interna que coarcta

qualquer veleidade de uma opinião própria.

Tornaram-se há muito blocos monolíticos

sujeitos à ditadura do leader, protegido e

acolitado pela sua guarda pretoriana. São

agrupamentos de gente que ou é ou aceita

cingir-se acéfala, para agradar ao chefe e não

ser ostracizada. São também agências de

emprego, antros de nepotismo, algares de

cumplicidades inconfessáveis.

Quem acredita ainda que a democracia é

“o governo do povo pelo povo” (e para o

povo)? Alguns ingénuos, possivelmente. A

Democracia tornou-se um regime oligárquico

que governa para a oligarquia que a capturou.

Esta é a verdade pura e crua. Erra quem

pensa que o mal está nos eleitores, que

fariam escolhas erradas. Os eleitores

escolhem em função da oferta que se lhes

apresenta, e essa oferta é muito pobre e

piora de geração em geração. Os eleitores,

coitados, têm de escolher entre o que os

partidos lhes oferecem. E oferecem-lhes o

mérito, o patriotismo, a honestidade e a

decência? Não. Oferecem-lhes a

mediocridade (técnica e política), a

subserviência, a falta de escrúpulos, o

seguidismo acrítico, e tantas vezes —

demasiadas vezes — a ganância pessoal.

Grande parte deste seguidismo, ou da

facilidade com que os estados-maiores dos

partidos o conquistam, tem razões

sociológicas. Um professor liceal que vive há

anos no absoluto anonimato de uma terra de

província, ainda por cima mal pago, acha-se,

quando se vê sentado em São Bento com um

ordenado duplicado, como César depois de

ter passado o Rubicão. Atingiu a glória, e por

nada deste mundo quer voltar ao apagado e

vil viver de quando ensinava Geografia aos

alunos de Freixo de Espada à Cinta:

aprovará o quer que lhe mandem pensar.

Tanto basta para que se mantenha fiel e

cordato.

Não vejo como se possa sair deste círculo

vicioso: votamos obrigatoriamente nos

nossos algozes. Isto tanto vale para a

esquerda como para a direita: a natureza e o

funcionamento dos partidos são iguais,

mesmo que as ideologias divirjam. É caso

para perguntar: “Que fazer”? Infelizmente,

não me parece que exista solução. A

democracia não é capaz de vencer os seus

próprios demónios. Nos tempos que

correm, corrompe os homens que a dirigem

— ou são os homens que a corrompem a ela?!

— e acabou a fazer da classe dirigente uma

trama inextricável de cumplicidades que

impedem em absoluto a sua regeneração, o

que talvez devesse começar pelo

apuramento da verdade e cobrar

responsabilidades. Terá chegado a altura de

pensar uma alternativa à democracia?

Chegou sem dúvida, mas essa alternativa

não existe sequer teoricamente. Qual seria o

desenho de um regime

que nos desse liberdade, um Estado de

direito e um Estado social? Não faço ideia.

Ilude-se quem pensa que a regeneração da

democracia depende da bondade dos

homens. No estado a que chegámos, é o

sistema que está doente e esgotado. A

lamentável impotência da Justiça talvez seja

a sua nódoa mais negra e o mais alarmante

sintoma da degenerescência.

No século XVIII, o Iluminismo forneceu as

ideias que permitiram opor ao absolutismo

monárquico um regime constitucional,

liberal e democrático. Essas ideias

cristalizaram como um horizonte de

possibilidades alternativas. Nós não temos

nada disso

 

Comentário (Rui LM)

 Uma reflexão honesta.
Talvez demasiado derrotista. Não induz a busca de uma alternativa, mas quase postula a inevitabilidade do modelo actual.
E não é disso que os cidadãos que ainda restam necessitam.

A democracia representativa ou representada não passa de um esquema intencionalmente fraudulento no qual se convence um incauto de que pode e deve confiar na bondade da representação que lhe propõem.
Basta que confie no momento da delegação (do voto), depois... ao longo do mandato não volta a intervir no processo.
Desde a eleição do palhaço-mor aos "arrumadores", entenda-se poder local.
Depois... tudo funciona na obscuridade, dos negócios às nomeações, com mentiras, meias verdades ou mesmo declarações no âmbito de segredo de (mau) estado.
É absurdo, mas o rebanho já aceitou a ideia de que há segredos que só os artistas do circo devem conhecer, mesmo que isso signifique convidarem-no para assistir ao espetáculo e acabarem numa câmara de gás. Os próximos convidados não se preocuparão em questionar onde estão os anteriores convidados, na euforia de os deixarem "ir ao circo" também.
É o modelo desta democracia.
Todos devem ter o direito de ir ao circo, mesmo que acabe na câmara.
Nada de novo, e a memória é curta ou é longa a ignorância.
Ler o programa escolar sobre a idade contemporânea no ensino, é revoltante.
A intoxicação, desinformação e omissão objectiva de factos históricos é revoltante.

Levas um rebanho a pastar, a beber, de regresso ao redil. E ele segue-te.
Quando o levares ao matadouro, vai continuar a seguir-te.
Mas é do que o rebanho gosta. Geralmente, até ser demasiado tarde.

Se há alternativa?
Naturalmente que sim.
A democracia natural. A da manifestação, permanente e actual, da vontade de uma nação em todas as matérias de governação que não se encontrem programadas e delegadas.
Sempre que seja (e qualquer que seja) necessário propôr uma medida, não meramente conjuntural mas estratégica, que não se encontre previamente inscrita num programa de governo, é submetida a sufrágio (referendo). Exemplos? Nacionalização da TAP, da GALP, injecções de capital na banca, acordos ortográficos, gestão da saúde pública, acabar com os livros no sistema educativo, impôr um registo magnético de vacinação (o próximo será o chip)... continuamos?
É um processo moroso?
Não, se antecedido por debate público honesto e objectivo, é o tempo necessário para colocar uma cruzinha.
É um processo dispendioso?
Não. Há orgãos de comunicação já assalariados, e mesmo estatais para a dinamização desse debate.

Por outro lado, não percebo como se aceita a nomeação para cargos administrativos sob fundamentação de "confiança política". Quem inventou o conceito, teve uma ideia brilhante.
A vantagem funcional e primária estaria no exercício de uma governação previamente programada e sufragada.

Mas, a verdade, é que o clientelismo já era uma norma no Império Romano. E implodiu quando deixou de chegar (em termos razoáveis) para todos, ou quando foi apercebido pelos "esmagados" que afinal era um gigante com pés de barro.
Nada de novo.
A caça já abriu na Europa civilizada, esperemos que chegue ao Ocidente.
A propósito, achei divertido o resultado das últimas eleições em Espanha e a forma ridícula como a comunicação social cá do burgo (especialmente os troca-tintas assalariados) comentaram o resultado.
Temos eleições daqui a uns meses, esperemos para ver.

Abraço, Companheiro.
LM

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