segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Reflexão - Carta ao Cotrim

 (de Afonso de Melo)

Carta ao Cotrim

Amigo, cá estou ausente nesta Águeda que tantas vezes me faz doer por já não sermos, nem eu nem ela, aquilo que fomos. Não irei com o Nuno e com o Bernardo, com o Hiren e com o Gatinho, despedir-me de ti na frieza que nunca entendi de um cemitério. Fiquei como Vinicius e fujo de funerais porque quero recordar vivos os meus mortos. O sino da igreja bate as quatro da manhã. Não podia haver melhor hora para te escrever esta carta. Já sabes como sou: nego o mundo e o Deus que dizem tê-lo feito. nego que sejamos todos fabricados à sua imagem e semelhança. Bela porra de trabalho mal feito, se assim aconteceu. Desculpa lá, mas continuo a perguntar-me, tal como o Nelson Rodrigues quando soube da morte do Manuel Bandeira: morreste como, se estavas vivo? Se eras vivo. Se eras o absoluto contrariador da morte. Esta história está mal contada, vais ter de me explicar tudo melhor, para mim uma cerveja, para ti um copo de Bushmills, não falta muito para estarmos juntos, como sabes, a vida passa num instante. Agora enterros é que não, aguenta-me, se fazes o favor, lá a fraqueza. Talvez vá ao meu. Nem conseguiríamos trocar duas palavras de jeito e eu tenho um monte de coisas para conversar contigo, um projecto que hás de gostar, uma pilhéria que te fará rir até o chão tremer. Cantarás como sempre a Primavera e flores de lótus nascerão no teu sorriso enquanto bailas desengonçado ao som de Sanam Teri Kasam e tomas conta de todo o espaço em redor. A malta era mesmo assim, a tentar sugar divertimento das noites. Ah! Belas noites, meu mano. Hoje faz um frio de merda, mas por dentro. Eu sei que navegar é preciso e sinto uma onda imensa a tomar conta do que penso, afogando-me numa tristeza calma mas profunda como o mar. Olha, encontrei umas gotas a fugirem-me dos olhos. Salgadas como nunca. Deixa-me que as afaste com as costas da mão que já vou ter contigo. Espera só mais um bocadinho.

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