Os enormes sapatos de Joana Vasconcelos
Se receiam ser enxovalhados por recusar a “cultura”, Carlos Moedas e Isaltino Morais têm todo o direito a oferecer um museu à senhora dona Joana. Desde que o paguem dos próprios bolsos.
11 jun 2022, 00:21
Soube pela crónica de João Miguel Tavares, no “Público”, que as câmaras de Lisboa e de Oeiras andam à bulha para decidir qual delas espatifa 10 ou 15 milhões de euros num museu que guarde a obra de uma senhora chamada Joana Vasconcelos. Noto que a luta é para conseguir o direito a espatifar o dinheiro, e não o inverso. Sobre o assunto, o João Miguel escreveu o essencial. Naturalmente, tenciono encarregar-me do acessório.
O primeiro ponto é o custo do armazenamento. Em tempos, a pretexto de mudanças, tive de alugar duas garagens durante meses e a coisa ficou longe das verbas mencionadas acima. Estava capaz de sugerir às autarquias em questão que procurassem alternativas e, de caminho, despedissem os orçamentistas. Não o faço porque não vejo motivo para as autarquias patrocinarem a senhora dona Joana como não me patrocinaram a mim e aos milhares de discriminados que pagam dos seus bolsos o aconchego das respectivas tralhas.
Alguns dirão que, ao contrário das minhas, as tralhas da senhora dona Joana são arte. A esses respondo com o benefício da superioridade argumentativa. Por um lado, eles não conhecem o magnífico acervo que possuo. Por outro, com a ajuda da internet, conheci entretanto o acervo da senhora dona Joana. Três palavras: credo em cruz! Aquilo é arte apenas na medida em que o edifício onde Cristiano Ronaldo plantou a marquise é arquitectura, e os livros do ministro António Costa Silva são literatura. Do que vi, vi sapatos enormes, galos de Barcelos enormes, chaleiras enormes, candeeiros enormes, brincos de Viana enormes, garrafões de vinho enormes, tudo concebido numa espécie de croché de cores garridas e desagradáveis. Na verdade, as bugigangas da senhora dona Joana são o tipo de quinquilharia que qualquer português, sem contributo camarário, arrecada na garagem – apenas em maior e mais feio. É arte na perspectiva da família Carreira.
E, pelos vistos, nas perspectivas de Carlos Moedas, Isaltino Morais e, se virmos bem, de incontáveis políticos e adjuvantes que atribuem ao Estado a função de torrar o dinheiro dos contribuintes em traquitanas que muitos contribuintes, do alto da sua ignorância e de livre vontade, não dariam um cêntimo para apreciar. E certamente não dariam 15 milhões para armazenar. A mera possibilidade de, neste momento da conversa, alguém invocar Michelangelo ou Goya para lembrar que os frescos da Capela Sistina ou os retratos da realeza também foram encomendas estatais mostra justamente os abismos a que descemos. Comparar assombros criativos com os sapatos e os galos da senhora dona Joana é comparar a Piazza del Campo, em Siena, com a Praça Hugo Chávez, na Amadora. E a cantilena dos gostos que não se discutem serve para tentar justificar indiscutíveis desgostos.
A parolice é justamente esta incapacidade em distinguir a arte da fancaria, e a inclinação para, em caso de dúvida, preferir a fancaria, que é fácil, vistosa e, embora não se entenda a que título, dita “irreverente”. Não é um problema exclusivamente nacional: a propósito das misérias da “arte contemporânea”, o maior cronista inglês do século XX notava os “vigaristas e charlatães que as vendem e comentam, os pobres atarantados que as produzem, e o tímido e sisudo ‘establishment’ que receia acusações de filistinismo.” Mas é natural que num país periférico e semi-alfabetizado estas características sejam aprimoradas.
O pormenor dos “pobres atarantados que produzem” as misérias é que é duvidoso. A senhora dona Joana não é pobre, salvo de talento artístico, nem é atarantada, pelo menos na arte da “cunha”. Aliás, é ela que, adoptando uma tradição local iniciada nas últimas décadas, reclama junto dos poderes públicos o museu de que se acha merecedora. Percebo a necessidade de espaço para acomodar os gigantones que a senhora dona Joana manda fabricar (“Emprego mais de 50 artesãos de alta qualidade”, orgulha-se ela). E percebo a necessidade de esconder semelhantes embaraços em lugar que ninguém, no seu juízo perfeito, visitará. O que não percebo é o papel dos munícipes de Lisboa e Oeiras nesse drama.
Cito o João Miguel: é evidente que a senhora dona Joana “tem todo o direito a ter o seu museu” – como eu tenho a ter um porta-aviões ou uma casita em Laurel Canyon – “desde que o pague do seu próprio bolso”. É igualmente evidente que, se pretendem dispensar a senhora dona Joana de encargos e receiam ser enxovalhados por recusar a “cultura”, Carlos Moedas e Isaltino Morais têm todo o direito a oferecer-lhe um museu. Ou dois, para solucionar a compita. Desde, lá está, que o paguem dos próprios bolsos. O chato é que, entre nós, a “visão”, o “empenhamento”, a “iniciativa” e (desculpem) a “pró-actividade” raramente coincidem com os proprietários dos fundos que alimentam virtudes tão louváveis. Nas artes alegadas e nas restantes artimanhas, a “pró-actividade” é deles, o dinheiro é nosso.
Com a razão do costume, Vasco Pulido Valente disse que “A história da pintura podia ser escrita e bem escrita, sem sequer uma nota de pé de página sobre o que os portugueses pintaram.” Ou esculpiram, acrescento. Ou ordenaram a 50 artesãos de alta qualidade que fizessem. Já a história do atraso de vida exigiria um volume dedicado a Portugal. Um volume gigante, forrado a rendas de bilros e com o título em pechisbeques brilhantes.
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