(Pedro Tadeu 24.07.2012 no DN)
A primeira
vez que percebi a brutalidade do exercício do poder político tinha uns sete ou
oito anos de idade. José Hermano Saraiva explicava, no programa O Tempo e a
Alma, que D. Afonso Henriques mandou casar a filha de 15 anos, a infanta D.
Urraca, com D. Fernando II, de Leão. "Era ainda uma criança,
coitadinha!", sublinhava, com ar teatral, para nos emocionar com o drama
da menina. E eu emocionei-me.
A primeira
vez que percebi a existência das classes sociais, os interesses distintos que
as perseguem, a divisão que as separa, a contradição e a luta entre elas,
permanente, foi, no mesmo programa, num outro episódio, dedicado aos Painéis de
São Vicente de Fora.
Neles, como
todos sabem, vemos 59 figuras: da nobreza, do clero, da burguesia e do povo do
século XV. Neles desenvolve-se, ainda hoje, um mistério interpretativo em cada
uma daquelas caras.
Para José
Hermano Saraiva, o significado profundo daquele quadro, o significado perene da
sua própria intervenção televisiva, era este: a grandeza e honradez do povo
português, "da gente humilde" que com o seu esforço, engenho e
coragem garantiu o seu sustento e sobrevivência, mas também a independência e a
liberdade de Portugal. Um povo vencedor, apesar das traições e dos desvarios
que sempre atravessaram os comportamentos das classes dominantes. Estas, no
entanto, deram-nos indivíduos de enorme estatura que, em inúmeras ocasiões,
sobrepuseram-se à mediocridade dos seus pares e mudaram o curso da História.
Era uma
narrativa de heróis, de vilões, de indivíduos. Era também a história de uma
identidade coletiva: a do povo português, a "Alma", a Nação, que ele
intelectualizava com compromisso ideológico.
O ministro
do Estado Novo, que teve a polícia de choque na universidade a reprimir a crise
académica de 1969, terminaria essa sua primeira série de programas, onde dizia
bastante mal dos poderosos, para ser embaixador no Brasil. "Chutado para
cima", dir-se-ia hoje.
A revolução
do 25 de Abril aceitou-o de volta à TV, mais depressa do que o seu passado
político faria supor. A historiografia dos anos 80 e 90, onde era proibido
existirem heróis ou vilões, tentou liquidar a credibilidade científica deste
homem, mas, provocando enorme ciumeira, a sua popularidade cresceu.
Para muitos
portugueses, mesmo aqueles que, como eu, estavam na barricada política oposta à
de José Hermano Saraiva - talvez mesmo, se as circunstâncias o exigissem,
dispostos a travar uma guerra fratricida, mas patriótica, como nos tempos
imemoriais que ele narrava -, a notícia da sua morte é a notícia do fim de um
bom pedaço da nossa história pessoal. É uma notícia triste.
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