quinta-feira, 9 de agosto de 2012

José Hermano Saraiva


Vi a luta de classes no José Hermano Saraiva
(Pedro Tadeu 24.07.2012 no DN)

A primeira vez que percebi a brutalidade do exercício do poder político tinha uns sete ou oito anos de idade. José Hermano Saraiva explicava, no programa O Tempo e a Alma, que D. Afonso Henriques mandou casar a filha de 15 anos, a infanta D. Urraca, com D. Fernando II, de Leão. "Era ainda uma criança, coitadinha!", sublinhava, com ar teatral, para nos emocionar com o drama da menina. E eu emocionei-me.

A primeira vez que percebi a existência das classes sociais, os interesses distintos que as perseguem, a divisão que as separa, a contradição e a luta entre elas, permanente, foi, no mesmo programa, num outro episódio, dedicado aos Painéis de São Vicente de Fora.

Neles, como todos sabem, vemos 59 figuras: da nobreza, do clero, da burguesia e do povo do século XV. Neles desenvolve-se, ainda hoje, um mistério interpretativo em cada uma daquelas caras.

Para José Hermano Saraiva, o significado profundo daquele quadro, o significado perene da sua própria intervenção televisiva, era este: a grandeza e honradez do povo português, "da gente humilde" que com o seu esforço, engenho e coragem garantiu o seu sustento e sobrevivência, mas também a independência e a liberdade de Portugal. Um povo vencedor, apesar das traições e dos desvarios que sempre atravessaram os comportamentos das classes dominantes. Estas, no entanto, deram-nos indivíduos de enorme estatura que, em inúmeras ocasiões, sobrepuseram-se à mediocridade dos seus pares e mudaram o curso da História.

Era uma narrativa de heróis, de vilões, de indivíduos. Era também a história de uma identidade coletiva: a do povo português, a "Alma", a Nação, que ele intelectualizava com compromisso ideológico.

O ministro do Estado Novo, que teve a polícia de choque na universidade a reprimir a crise académica de 1969, terminaria essa sua primeira série de programas, onde dizia bastante mal dos poderosos, para ser embaixador no Brasil. "Chutado para cima", dir-se-ia hoje.

A revolução do 25 de Abril aceitou-o de volta à TV, mais depressa do que o seu passado político faria supor. A historiografia dos anos 80 e 90, onde era proibido existirem heróis ou vilões, tentou liquidar a credibilidade científica deste homem, mas, provocando enorme ciumeira, a sua popularidade cresceu.

Para muitos portugueses, mesmo aqueles que, como eu, estavam na barricada política oposta à de José Hermano Saraiva - talvez mesmo, se as circunstâncias o exigissem, dispostos a travar uma guerra fratricida, mas patriótica, como nos tempos imemoriais que ele narrava -, a notícia da sua morte é a notícia do fim de um bom pedaço da nossa história pessoal. É uma notícia triste.

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