Dois enigmas
Foi divulgada a segunda parte do quinto relatório do painel da ONU que desde 1988 estuda as alterações climáticas (o IPCC). O texto impressiona pelo rigor científico, pela quantidade de informação compulsada, pelo crivo de exigência metodológica a que todas as conclusões são submetidas. Trata-se de um dos raros documentos em que se procura dar voz à verdade objetiva. E essa voz é agreste. Diz-nos que estamos a transformar a nossa única casa planetária num lugar mais inseguro e imprevisível, onde haverá mais gente e menos recursos, mais necessidade de alimentos, de água, de habitação, e menos condições para os fornecer com equidade. Estamos, como espécie humana, em rota de colisão com a nossa mãe Terra, e em rota de colisão uns contra os outros, num mundo onde os bens básicos estão em risco. Há, todavia, dois mistérios que necessitariam de muitos relatórios para serem esclarecidos. Primeiro: por que razões permanecem instituições e indivíduos indiferentes à ameaça? E isso não é só para os néscios que negam o óbvio, pois a indigência intelectual acompanha os homens como um resíduo inevitável. Refiro-me à resistência de tantas ciências. Quando é que teremos um direito, uma economia, uma psicologia, uma sociologia para o mundo que aí vem? O segundo enigma prende-se com a política. Obama, Merkel e Putin talvez comentem com preocupação as conclusões do IPCC, mas a seguir voltarão às suas atividades como se nada fosse com eles. Construímos uma política para o "agora". Talvez o nosso poderio técnico para conquistar o mundo tenha avançado muito mais depressa do que a nossa capacidade moral de cuidado e de autocontenção. Talvez tenhamos caído no erro de dar o futuro como certo e por isso acabemos por o transformar, para nós próprios, em algo cada vez mais improvável. (DN 01.04.2014)
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