Da verdadeira amizade
Quando, em 2006 e 2010, me publicaram os livros de crónicas, ofereci um exemplar a cada amigo. Talvez um ou outro amigo tenha comprado, entre resmungos, o seu. E, que me lembre, quase nenhum dos meus amigos com acesso aos media divulgou as extraordinárias obras, que para vergonha do País não alcançaram o êxito merecido. Em benefício do contexto, admito que não tenho assim tantos amigos. Poucos e bons? Isso é que era bom. Digamos que os meus amigos são poucos e escapatórios. Ou poucos e fraquinhos. Ou poucos e uma cambada de inúteis.
Amigos a sério esgadanham-se para adquirir o livro recém-publicado do seu amigo. Amigos a sério açambarcam 14 livros de uma só vez e limpam as prateleiras das Fnac e dos supermercados. Amigos a sério avançam com 170 mil euros a fim de financiar a empreitada. Amigos a sério projectam o livro do amigo ao topo das vendas, ainda que o mesmo seja uma tese adolescente sobre tortura e qualquer pessoa prefira a da pinça ou a de Tântalo a ler semelhante mono. Conforme conta Fernando Esteves na SÁBADO anterior, amigos a sério são os de José Sócrates. Não sei se são muitos. Porém, são óptimos: oito bastaram para transformar A Confiança no Mundo num caso de sucesso editorial.
Este é apenas um exemplo. Certo é que toda a história de José Sócrates me levou a questionar a qualidade dos meus amigos. Há quanto tempo um amigo não me põe à disposição um apartamento jeitoso em Paris sem prazo de despejo? Ou uma casa de estilo espanhol na Califórnia, já que falamos de situações ideais? No máximo, aconteceu emprestarem-me um T0 em Lisboa por um par de noites, o que – desculpem-me os patriotas – não é comparável.
E há quanto tempo um amigo não me fornece uma verba em numerário para que eu possa estimular-me longa e intelectualmente na Toscana ou, digamos, no Havai? Pagarem-me umas lulas grelhadas no restaurante aqui ao lado não conta. As contas que traduzem a autêntica amizade são das caladas, no sentido em que envolvem avultadas quantias e no sentido em que, por modéstia, não convém anunciá-las em público. Amigos a sério patrocinam-nos uma vida a sério, com Mercedes, motorista e emprego nada trabalhoso e bastante remunerado. Os amigos que Deus e o acaso me deram jamais me patrocinaram sequer um Subaru e nunca me chamaram para presidir a um ou dois conselhos consultivos: limitam-se a conversar comigo, o que reforça o significado da conversa fiada. De agora em diante, a única coisa que aceito fiada, e com juros apenas hipotéticos, é o dinheiro, no fundo a derradeira expressão de afecto.
Aproveito pois a oportunidade para anunciar que entrei em fase de recrutamento de novos amigos, sinceros, abonados e generosos amigos. Dizem que quem os tem não morre na cadeia. E embora se arrisque a ficar lá uns meses, não lhe faltarão visitas dentro e fora das horas previstas, sempre a cargo de boas almas capazes de percorrer 100, 300 ou 500 km para abraçar um amigo. Os meus passam semanas sem aparecer, ainda que residam num raio de escassos metros. O raio que os parta.
O BOM
Sombra de dívidas
Enquanto trabalhador independente aconteceu-me em tempos acumular prestações à Segurança Social, que depois liquidei com juros absurdos. Gostei? Não. Tinha outro remédio? Salvo a fuga para Barbados, não. As dívidas, mesmo involuntárias, são para pagar. Por isso estranho a confusão de Passos Coelho, homem escrupuloso, a propósito. E saúdo a conversão repentina da oposição ao respeito pelos compromissos. Parece que o exemplo grego morreu aqui.
O MAU
Os homens do saco
Em nome do ambiente, os portugueses transformaram-se em aprendizes de malabarista. É olhar para as lojas, repletas de gente que tenta equilibrar 14 bens de primeira ou segunda necessidade nas mãos, braços e queixo. E ninguém se queixa. Sem surpresas, a populaça acata as directivas de alucinados com triste resignação. Há até quem já se faça sempre acompanhar por um enorme saco, como o homem mítico que raptava crianças. Mas, no caso, as crianças somos nós.
O VILÃO
Vida soviética
Um inglês, um francês e um venezuelano olham uma pintura de Adão e Eva. Para o primeiro, a maçã prova que ambos são ingleses. Para o segundo, a nudez sugere que são franceses. Para o terceiro, são venezuelanos: não têm o que vestir, mal têm o que comer e alegadamente vivem no Paraíso. A New Yorker compilou anedotas alusivas ao triunfo do socialismo em Caracas. E há aquela do sujeito cansado das filas que decide matar Maduro – para descobrir que a fila é ainda maior.
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