sábado, 10 de março de 2018

Reflexão - Alberto Gonçalves

(LBC - Uma das melhores crónicas de AG, sem dúvida!)

Jonas, vende-me a tua camisola

Não tenho muito a dizer sobre os sucessivos casos de corrupção no futebol português, excepto que se não fosse corrupto não era futebol ou não era português. Porém, achei graça à história do funcionário do Benfica que comprou o dever de sigilo de diversos funcionários judiciais. Sobretudo engraçada é a impressionante barreira de comentadores “isentos” que, munida de argumentos indignos de uma osga, surgiu nas televisões a desvalorizar a trafulhice. Para muitos especialistas, o assunto é irrelevante na medida em que os favores foram prestados a troco de fancaria como fatos de treino e bilhetes para um jogo. É uma nova escola de penalogia, na qual um homicídio só é crime se possuir motivo material – os psicopatas podem prosseguir a vidinha em paz.
Sucede que, no mundo real, o assunto é principalmente relevante por causa da fancaria. Os especialistas, em geral, servem com discrição um dono e são pagos para produzir disparates. Nessa linha, percebe-se a atitude do tipo que trafica informação confidencial para receber fortunas e a eventual reforma nas Bahamas. Já custa um bocadinho a perceber o tipo que arrisca o emprego e a pele por artigos de “merchandising”. Ou, dado estarmos onde estamos, não custa nada: nem todos os coitados que da bancada imploram por camisolas são vítimas do frio. Imagine-se que um coitado recebe mesmo uma camisola autografada por Lombriga, Jeremias ou qualquer “craque” imortal. E que o coitado é convidado a assistir a um “clássico” (termo técnico) no camarote presidencial da Luz. E que o coitado ganha a subida honra de cumprimentar “o presidente” e luminárias sortidas. O coitado, ainda incrédulo, gaba-se da proeza aos amigos e familiares durante os dezasseis anos seguintes. Em suma, o coitado realizou-se. Os coitados realizam-se com pouco.
É evidente que o problema não é exclusivo dos adeptos do Benfica, se bem que os seis ou sessenta ou seiscentos milhões de benfiquistas tendam a açambarcar a matéria. O problema é, desculpem a pompa, nacional e remete para as baixas expectativas que nos concedemos. Uma razoável quantidade de alemães, japoneses ou americanos sonha com sucessos na ciência ou nos negócios. O português médio sonha com sucessos desportivos, para cúmulo não os próprios mas os de gente que nem o conhece. Sujeitos que nunca chutaram o proverbial esférico declaram-se campeões na primeira pessoa, desprezando que os campeões disto ou daquilo são outras pessoas, assalariadas de empresas que partilham com as massas glórias vãs e prejuízos reais. Quando a maior ambição de alguém consiste em roçar-se num “dirigente” duvidoso e celebrar um “título” no Marquês ou lá o que é, o nosso futuro colectivo está traçado. E o passado explicado.
O fanatismo pelos clubes (e frequentemente por clubes sedeados a 600 km de distância do fanático) integra a natureza resignada e letárgica que nos convence a aceitar tudo: governantes pavorosos, um Estado tutelar e desonesto, justiça intermitente, dependência económica, cultura pacóvia, incêndios incomparáveis, o “prestígio” da Eurovisão, os alertas da Protecção Civil, a RTP, o marxismo institucional, a desdita enfim. O povo agarra-se à dita “paixão clubística” porque é uma oportunidade de humilhar o próximo e exibir, sem trabalho, superioridade e conquistas. O pormenor de a superioridade nos relvados ser de importância questionável e de as conquistas serem alheias não vem ao caso. Retirar ao cidadão comum a possibilidade de se exaltar através do futebol praticado por terceiros é reduzi-lo a uma existência tristonha. Não se faz. E, diga-se, não se tenta fazer.
Aqui chegados, devo informar que não me chamo Pacheco Pereira. Não olho com desdém a obsessão pela bola enquanto alimento o fascínio pelo dr. Cunhal ou horrores similares. O futebol não me é repulsivo ou estranho. Sei do Pepe do Belenenses, do do Santos e do do Porto. O meu avô materno jogou na primeira e na segunda divisões nos idos de 1940. Quatro décadas depois, levou-me inúmeros fins-de-semana a inúmeros estádios. Sendo “sportinguista” e bom homem, deu-me inúmeras alegrias e uma lição ao “benfiquista” que eu era: a única equipa que podemos criticar é aquela de que gostamos. Se, feliz ou infelizmente, nem sempre apliquei a máxima na vida, no futebol usei-a com rigor e sem dificuldade: jamais, e reforço a palavra, discuti semelhante assunto.
Não é prática corrente. Olhe-se em volta e veja-se que o futebol é pretexto para, na melhor das hipóteses, discussões infantis (a “azia”, valha-me Deus) e, na pior, uma irracionalidade que transforma indivíduos normais em criaturas perigosas. Preocupa-me os que, à conta do futebol, se vendem por lixo. E preocupa-me mais os que os defendem alucinadamente. De borla.

Nota de rodapé:

Entre os que criticam a futura docência de Pedro Passos Coelho, existem os que o fazem por corporativismo (a tralha que atafulha as universidades é muito endogâmica), os que o fazem por perseguição política (a vigilância ideológica anda apertada) e os que o fazem por saloiice (os simples julgam que o “ensino superior” é um desfile de génios). E existo eu, que por razões ligeiramente distintas também acho repulsiva a ida de Pedro Passos Coelho para uma coisa chamada ISCSP.
Dez segundos de pesquisa bastaram para perceber que ISCSP significa Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, detalhe já de si desencorajador. Mais um minuto no Google e constatei que o ISCSP abriga uma coisa intitulada Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, detalhe capaz de suscitar calafrios. Ao fim de três minutos, descobri que o ISCSP, em colaboração com outras excelsas instituições, será pioneiro em doutoramentos nos tais estudos de género, detalhe que lança o pânico desenfreado.
Não precisei de pesquisar para ter a impressão de que, pelos padrões da política, Pedro Passos Coelho é um homem decente. Se tenciona continuar a sê-lo, não juntará o seu nome a semelhante espelunca. É necessário ganhar a vida? Há profissões dignas.

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