sábado, 10 de março de 2018

Reflexão - João César das Neves

Tribunais eficientes

Toda a gente sabe que há uma crise na Justiça. E toda a gente sabe porquê: os tribunais trabalham mal, não despacham os processos, que se arrastam indefinidamente. De facto, isso é falso. Como tantas outras coisas que "toda a gente sabe", considerar a realidade traz surpresas marcantes.
Não é preciso ser especialista para descobrir a distorção da imagem comum da Justiça; basta consultar as estatísticas do movimento dos tribunais, disponíveis em www.siej.dgpj.mj.pt. O total de processo pendentes nos tribunais de primeira instância, que atingiu um pico de quase dois milhões em 2012, desceu 33% até 2016, segundo os últimos dados, apresentados em Outubro. Cair um terço é espantoso! Isso deveu-se, em grande parte, à descida dos processos entrados, que reduziram 38% desde o pico em 2009 para 558 mil em 2016.
Claro que estas estatísticas globais agregam coisas muito díspares, mas considerando apenas a justiça penal, com os processos mais sensíveis, a evolução é ainda melhor. A trajectória descendente dos processos pendentes começou logo em 2005, tendo caído 77% desde então, para 56 mil em 2016. A entrada de novos processos é, de novo, a grande responsável, mas, descendo só 59% até 88 mil em 2016, implica grande melhoria de produtividade.
Podia dizer-se que o atraso tão badalado se deveria aos tribunais superiores, para onde vão os inevitáveis recursos, mas de novo os números negam-no. No total geral e na justiça penal a trajectória dos processos pendentes é descendente desde 2005, caindo 33% e 46% respectivamente, mesmo incluindo a ligeira subida de 2015 e 2016. Isto apesar de, nestes níveis judiciais, o número de processos entrados ter crescido 8% e 10%.
Obviamente que a questão merece análises mais finas e cuidadosas. Aliás, o site inclui, entre muitas outras coisas, indicadores de eficiência judicial. Mas estes números elementares chegam para mostrar como a visão comum do problema é enviesada. Quer isto dizer que não existe uma crise na Justiça? Claro que existe. Se anos após escândalos bancários e de corrupção continua a não haver ninguém preso ou absolvido, tem de haver uma grave crise na Justiça.
Há muito que no tribunal sumário da opinião pública personagens famosas são culpadas de graves crimes e delitos. Toda a gente sabe isso menos a Justiça, que continua a meditar, enquanto os arguidos passeiam pelas ruas. É possível que essas pessoas sejam inocentes e tudo não passe de calúnias mediáticas. Nesse caso o atraso da Justiça é ainda mais escandaloso, pois essas vítimas precisam de limpar o nome. Quando, além disso, todos os dias lemos novas e gravíssimas acusações contra personalidades destacadas na vida económica e política, sem que nada se passe, é evidente a gravidade da situação. No entanto, à luz dos dados referidos, temos de dizer que a crise é mais complexa e insólita do que se julga.
Qual é então a verdadeira crise da Justiça? Isso é algo que só os especialistas do sector podem dizer, e nós não nos devemos atrever a alvitrar porque nos enganamos facilmente, como mostram os números citados. Só que os ditos especialistas têm um dom especial para criar explicações incompreensíveis e análises eloquentes mas herméticas. Talvez seja a sua formação jurídica que os incapacita para a comunicação inteligível. Sendo assim, não nos resta alternativa senão avançar com tentativas, enquanto esperamos um responsável do sector que saiba falar português.
As estatísticas da Justiça mostram então que, para a generalidade dos processos, a eficácia dos tribunais tem vindo a melhorar muito. Se ainda não é satisfatória, os ganhos conseguidos são impressionantes. Por outro lado, é também evidente que a imagem da Justiça é pior do que nunca. Como podem os dois aspectos coexistir? Bem, a imagem da Justiça não resulta da prestação média dos tribunais, com os quais, felizmente, a maioria da população não tem contacto. Aquilo que todos pensamos sobre o tema vem de um pequeno punhado de crimes, que andam pelos jornais, e que captam a imaginação nacional. E esses processos, como vimos, têm sido quase vergonhosos.
Esta dicotomia pode ter várias explicações. Podem ser ocorrências mais espinhosas, exigindo esforço adicional. Pode ser que os ricos cometam delitos mais complicados. Mas também pode ser que a Justiça funcione rápido só para os pobres. Esta é uma das explicações imediatas e também mais perturbadoras: os tribunais trabalham bem para todos menos para os famosos endinheirados, cujos advogados caros conseguem, pelo menos, empastelar a Justiça. Se for verdade, constitui uma falha muito pior do que o antigo atraso, que ao menos era equitativo. Talvez esta acusação seja injusta. Certamente que, se alguma vez fosse a tribunal este processo contra os tribunais, os factos aduzidos não passariam de mera prova circunstancial. Mas neste jornal, parte do tribunal sumário da opinião pública, pode acusar-se de enviesamento as autoridades judiciais.

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