quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Música - Charles Aznavour ("jornal I") 2/2

Charles Aznavour. O meia leca que se tornou um gigante da canção

Morreu na madrugada de ontem, aos 94 anos, ‘Petit Charles’, o grande artesão da canção francesa, alguém que se criou nas ruas de Paris, que nunca teve nem a estampa, nem a voz de uma grande estrela, mas subiu mais alto do que muitos e tantos com mais brilho
É sempre difícil extinguir o fogo, mesmo que a golpe de foice. Há muito que Charles Aznavour vinha repetindo, por tantas outras palavras, o verso do poeta: “Tenho mais recordações do que se tivesse mil anos”. E ao desaparecer, na madrugada desta segunda-feira, aos 94 anos, tendo regressado de uma digressão pelo Japão, dá a sensação que a morte não teve a coragem de o apanhar de pé. Não que a altura fizesse dele uma figura imponente - não tinha mais de um metro e sessenta -, mas era um desses incansáveis operários da paixão, alguém que nunca se queixou da falta de inspiração, pois dela não esperava muito; não esperava nada. “Não tenho mais que ideias. O trabalho converte-se em talento, e não ao contrário. Também não tenho imaginação, disse numa entrevista ao “El País”, em 2015. E acrescentou: "Há gente que a tem e, mesmo assim, não é capaz de escrever uma canção”.
Com uma carreira que se estendeu por oito décadas, Aznavour estava confiante de que iria viver até aos 100, mas não pensou é que continuasse a cantar à volta do mundo para lá dos 90 anos. Parece, assim, que a morte tinha com ele um pacto. Entretanto, mais difícil de explicar é como se tornou o último dos gigantes da canção francesa, e isto com uma voz que já na sua juventude não era grande coisa e que, cá para o fim, naturalmente, ficou bem pequenina. Se andava pelo mundo esgotando salas de concerto, isto acontecia porque, como explicou Miquel Jurado, jornalista do “El País”, depois de um concerto em Barcelona, no passado mês de abril, para o seu público era-lhe igual se Aznavour acertava na afinação ou cantava algumas oitavas a baixo do que era suposto ou se lhe faltava o fôlego para chegar às notas mais exigentes. Aquelas pessoas “não estavam a escutar mas a sentir (com tudo o que esta palavra implica) no seu interior o Aznavour das suas recordações, o seu próprio Aznavour”.
É da morte de um mito que se trata. Um homem que vendeu mais de 100 milhões de álbuns (180 milhões segundo a sua biografia oficial) em 80 países, escreveu mais de 1400 canções, e com as muitas de amor arrebatou corações em todo o mundo, e levava-os ao peito suspensos pelo fiozinho da voz. E se chegou tão longe, tendo abandonado a escola aos 10 anos, depois de ter nascido em Paris a pais arménios, que se haviam refugiado em Paris depois do genocídio de 1,5 milhões de arménios, em 1915, nos últimos dias do Império Otomano, isso ficou a dever-se à fenomenal persistência deste homem que, com uma mão fraca, fez um jogo dos diabos - e sem precisar de recorrer ao bluff.
“Quais eram os meus defeitos? A minha voz, a minha altura, os meus gestos, a pouca cultura e educação, a minha honestidade ou a minha falta de personalidade”, escreveu na sua autobiografia, “Aznavour par Aznavour”. “Quanto à minha voz, não posso fazer nada. Todos os professores de canto que consultei concordavam que eu não devia fazer vida de cantar, mas isso não me impediu de o fazer até sentir a garganta em ferida.” A voz pequena compensava-a com altas doses de emoção, tornando-se um “puro motor de beijos e lágrimas, de alegrias e mágoas”, lembrando as suas plateias que, na verdade, não lhe restava alternativa. “Só posso fazer uma de duas coisa: não cantar ou morrer em palco.” E, com o fatalismo próprio de todo o galã, avisava: “Decidi, por isso, morrer esta noite numa cidade que amo”.
Foi por aí, prometendo a sua morte por amor, alguém que, se não devia muito à inspiração, inspirava multidões, e outra das coisas que, segundo conta Miquel Jurado, usava a seu favor era a idade. Nessa terna sem-vergonhice de um terrível sedutor, perguntava se mais alguém ali tinha 94 anos. Como ninguém levantou a mão, rematou: “Como veem, onde quer que vá não há ninguém mais velho que eu.”
Se Shanoun Varenagh Aznavourian teve que fazer uns cortes no nome que os pais lhe deram quando veio ao mundo, nunca se esqueceu das suas origens. Numa entrevista ao “Expresso”, em novembro de 2016, explicou que por não ter mais família, nem avós, tios ou primos - “éramos apenas quatro: os meus pais, eu e a minha irmã” -, e por estarem desenraizados, isso os tornou mais próximos. O gosto pela música veio-lhe do pai, que cantava, e que, filho de um dos chefs do czar russo Nicolau II, abriu um restaurante em Paris. Já a mãe era atriz, e foi sob a sua asa que Aznavour desenvolveu a paixão pelo teatro, tendo representado pela primeira vez numa peça de teatro com apenas nove anos.
O que é surpreendente é que, antes de decidir devotar-se primeiramente à música, Aznavour tinha já uma carreira estabelecida como ator, tendo participado em mais de 60 filmes. O mais conhecido dos seus papéis foi provavelmente o do pianista com um passado misterioso na excêntrica fita de François Truffaut, “Tirez sur le Pianiste” (1960) - um papel que o cineasta disse ter escrito especificamente para Aznavour. Se a música passou a ter mais atenções suas, não deixou de fazer a sua perninha uma vez por outra no cinema, como acontece em “Die Blechtrommel” (1979), de Volker Schloendorff, e “Ararat” (2002), de Atom Egoyan.  
Casou três vezes, a última das quais em 1967 com Ulla Thorsell. E teve seis filhos: duas raparigas e quatro rapazes.
“Petit Charles”, como era chamado afavelmente pelos franceses, tornou-se no grande ambaixador da Arménia pelo mundo depois desta ter deixado de estar sob o domínio soviético. Quando era miúdo, tinha visto o pai ser levado à penúria no seu esforço para socorrer e alimentar refugiados arménios no seu restaurante. Na entrevista ao “Expresso”, Aznavour recorda-se também de terem escondido judeus em casa, aquando da ocupação nazi. Assim, depois de ter começado a escrever canções para Édith Piaf, quando a sua fama começou a crescer bem para lá de França, contando eventualmente entre os seus amigos com personalidades como Ray Charles, Frank Sinatra, Nina Simone, Charles Trenet, Maurice Chevalier ou Amália, tornou-se o grande porta-voz da causa do povo arménio e ajudou a angariar fundos para ajudar o país. 
O último filme que fez foi precisamente sobre o massacre dos arménios em 1915 que, mais de um século depois, as autoridades turcas continuam a negar, e, sem diabolizar os turcos, Aznavour, tendo tocado praticamente em todo o mundo, recusou-se a fazê-lo na Turquia. Ao longo da sua vida associou o seu nome à luta para ver a comunidade internacional reconhecer que o seu povo tinha sido, de facto, vítima de genocídio. Em 1988, foi o principal responsável pela campanha que conseguiu levar ajuda humanitária à Arménia após o terramoto que provocou a morte de 45 mil pessoas. Três anos mais tarde, quando o país se libertou da União Soviética, fez dele o seu embaixador não oficial. E não só fazia gala da sua placa do Corpo Diplomático, como a canção com a qual mais vezes abria os seus espetáculos nas últimas duas décadas era “Les émigrants”, um hino dedicado à história dos seus pais e a um crescente número de pessoas obrigados a abandonar os seus países. 
Depois de passar oito anos na entourage de Piaf, fosse escrevendo canções para ela, fosse como seu secretário - mais tarde confessaria que, se a amizade entre os dois sobreviveu, isso se deve a nunca terem tido uma ligação romântica -, foi ela quem o encorajou a não se ficar pela composição, acreditando que a grandeza das suas canções não se perdia pela falta de uma grande voz. Assim, e depois de ter acompanhado Piaf ao piano em Nova Iorque, depois da II Guerra Mundial, voltou à Europa e arranjou-se como pôde a tocar em cafés frequentados pela classe operária, tanto na França como na Bélgica. Foi por esses anos que ouviu os entendidos dizerem as piores coisas sobre ele, criticando tudo desde a sua aparência e presença em palco até ao modo de cantar.
Depois de ter escrito para alguns dos principais nomes da canção francesa - além de Piaf, Gilbert Bécaud, Léo Ferré e Yves Montand -, Aznavour acabaria por tornar-se o mais improvável dos seus heróis. Em 1999, numa sondagem da “CNN” e da revista “Time”, foi considerado o entertainer do século. E se marcou a vida íntima de tantas gerações, talvez nenhum testemunho tenha conseguido explicar o porquê melhor do que o de Liza Minnelli, que o conheceu quando era ainda uma adolescente (estava ele já pelos 40), e que falou no deslumbramento que a levou a segui-lo para Paris numa entrevista de 2013, citada no obituário do “New York Times”. “Ele realmente ensinou-me tudo o que sei sobre cantar - como cada canção é um filme diferente”. Os dois permaneceram amigos ao longo das décadas, tendo muitas vezes subido ao palco juntos.

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