terça-feira, 19 de abril de 2022

Reflexão - Afonso de Melo (jornal "I")

 

A sardinha da Lacoste

Desde que decidi viver em Alcácer do Sal, cumpri o mantra que repeti a mim mesmo milhares de vezes ao longo da vida: não há nada urgente que continue urgente ao fim de seis meses.

O som do motor é reconfortante. De cada vez que, ao volante do Anglia Fascinante, tomo a estrada da Comporta, seja para ir ver o mar ou ir ver umas cervejas a casa do meu velho irmão Francisco Febrero (por extenso Xitó), ali ao Montalvo, sinto aquela tranquilidade tão profunda de não ter pressa. Desde que decidi viver em Alcácer do Sal, cumpri o mantra que repeti a mim mesmo milhares de vezes ao longo da vida: não há nada urgente que continue urgente ao fim de seis meses. Nunca voltaremos a ter aquela sensação adolescente de que a vida dura para sempre, de que ninguém morre à nossa volta, e que os dias, cada vez mais infinitos, nos trarão outros dias, também eles infinitos. Mas podemos tentar. Tentar sempre. O velho carro estremece quando acelero, puxando pelo seu motor de sessenta e dois anos, assim mesmo, por extenso. Tem o cheiro agradável da gasolina que os modernos já não têm, uma velocidade cadenciada que não levo além dos 75 quilómetros por hora. Por mim passam carros numa velocidade cretina, pisando riscos contínuos, numa urgência de almoços nos restaurantes do Carvalhal ou do Pego, que são finórios e, desde que fechou o Dinis, já não têm peixe fresco grelhado, acabado de sair do mar. Calculo que  o cheiro a sardinhas seja incomodativo quando se entranha nas Lacostes. Crocodilos e carapaus não nadam nas mesmas águas. A Comporta pertence cada vez mais a turistas e gente com dinheiro que não tem pachorra para tirar espinhas  aos pregados e rodovalhos. Lembro-me do meu antigo colega de Escola Primária, em Benavente, que levava sempre no bolso, uma boga dentro de um papo-seco para matar a fome. Um dia a boga caiu-lhe do bolso e levou com a lição da velha mestra palmatória até que as lágrimas lhe saltaram dos olhos. Talvez seja por ter visto o tempo mudar o mundo desta maneira um bocado incompreensível, que o ronronar do Anglia me faz bem à idiossincrasia. Por ter havido um tempo em que ir à praia e exibir a pele bronzeada não era para gente fina. Como diria o meu velho mestre Plácido, eles vão à praia para ficarem escuros, que é moda, mas se saíssem da areia com carapinha não punham lá os pés.

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