(Alberto Gonçalves)
Pobres mas pasmados
A estabilidade da nossa fronteira derreteu-nos a nós, que sem o que defender ou conquistar nos habituámos depressa ao pouco que havia. E ao quase nada que há.
Estive de férias e a oito mil quilómetros de distância de Portugal. Por muito que tenha gostado de ir, gosto ainda mais de regressar a este abençoado país. Duas semanas, ou nem isso, chegam e sobram para me encher de saudades. Saudades da comida, da gasolina a dois euros o litro, das escolas sem professores, dos hospitais sem consultas, do SNS em que se morre salvaguardado da cobiça “privada”, das rábulas do prof. Marcelo, das greves nos indispensáveis serviços públicos, do cafezinho, das promessas do governo, das mentiras do governo, dos abonos do governo, dos delírios do governo, da Justiça entre aspas, do poder de compra que não tarda compete com o da Bulgária, do imparável saque fiscal, das soluções para a habitação que ameaçam acabar com a habitação, das prestações do crédito, das tendas que agora são o endereço de tantos, do excesso de mortalidade sem precedentes soltos nem responsáveis presos, do crescimento sem hesitações da dívida pública, da TAP que é a nossa riqueza e o nosso orgulho, da CP que é o nosso orgulho e a nossa riqueza, da Transtejo que não sei bem o que é, da debandada de todos os cidadãos com idade inferior a 40 e QI superior a 50, do futebol que é uma festa, da destruição organizada e intencional de qualquer hipótese de uma existência independente do Estado ou dos partidos ou da esmola, dos melhores tremoços do mundo a acompanhar a melhor cerveja do mundo, do melhor clima do mundo, do melhor combate às alterações climáticas do mundo, das melhores ciclovias do mundo, das melhores praias do mundo, do melhor mar gelado do mundo, das melhores matas do mundo, dos melhores baldios a aguardar licenciamento autárquico do mundo, dos autarcas a morar em apartamentos que caso os pagassem lhes custariam 60 anos de salários, da dedicação dos políticos ao bem comum, das cidades mortas às nove da noite porque convém dormir cedo de modo a acordarmos fresquinhos para produzir impostos, do dr. Costa, dos empregados do dr. Costa, do socialismo, da miséria, do silêncio.
O silêncio impressiona. Perante um destino tão negro quanto o da canção de Dino Meira, os portugueses não saem à rua a partir tudo, a partir uma ou duas coisas ou sequer a notar que assim não pode ser. Fora da disciplina corporativa e sindical, os portugueses não se manifestam. No máximo, alguns portugueses resmungam – baixinho que as paredes têm ouvidos e os tempos voltaram a não ser propícios a exuberâncias. Em geral, porém, os portugueses comem e calam. Uns poucos comem no restaurante. A maioria come em casa, enquanto consegue suportar as respectivas prestações. Os restantes, quando querem comer, procuram as filas da caridade. Todos estão calados, todos parecem resignados, a contemplar o que quer que se contempla nos ecrãs dos telemóveis. Os portugueses são pobres mas pasmados.
Tudo somado – preços, rendimentos, custos, tributações, trafulhices – Portugal é dos lugares menos confortáveis para se viver no Ocidente. A boa notícia é que, por este andar, em breve o Ocidente deixará de nos servir de padrão comparativo e, nem que seja só por uns anitos, seremos capazes de fazer um brilharete junto dos indicadores económicos e sociais da Venezuela e do Brasil. A má notícia é que, comparações à parte, somos uns pelintras. E a acomodação colectiva ao facto garante que continuaremos a ser uns pelintras por um longo e talvez eterno futuro. A pelintrice não nos enerva ou embaraça. Às vezes, dá a ideia de que nos envaidece.
Se não se importam, eu tenho uma teoria sobre o início disto, desta indolência face à adversidade, desta indiferença à penúria, desta satisfação na mediocridade. Ei-la: a culpa é das fronteiras pátrias, que se definiram há uns oito séculos e tal para não voltarem a ser bulidas. Nesse período, na Europa que conta fizeram-se e desfizeram-se e refizeram-se centenas de traçados fronteiriços e com eles impérios, nações, reinos, principados, protectorados e partições sortidas. E não preciso referir a importância do conceito de “frontier”, a volátil linha da ocupação e expansão geográfica, na América do Norte. A precaridade das fronteiras moldou os povos. A estabilidade da nossa fronteira derreteu-nos a nós, que sem o que defender ou conquistar nos habituámos depressa ao pouco que havia. E ao quase nada que há. Inchados de inércia, e com um desvio ultramarino pelo meio que não alterou o essencial, arrastamo-nos por incontáveis gerações numa periferia a que ninguém liga e que, para efeitos de consolo, imaginamos vital. Os proverbiais malucos a falar sozinhos, fingimos integrar uma realidade a que não pertencemos excepto como os figurantes de sempre, e os pedintes de hoje em dia.
Em suma, mentimo-nos ancestralmente e sem parança. Sem a mentira, seria impensável tamanha ausência de ambição e de responsabilidade e de autonomia e de dignidade e de revolta. E seriam intoleráveis os recorrentes vexames a que jovialmente nos entregamos. E seríamos uma sociedade radicalmente diferente daquela que, no fundo, escolhemos inventar: um pastiche mal amanhado do que imaginamos acontecer entre a gente crescida. Portugal é uma brincadeira, e tudo, tudo, tudo começa aí. Falta saber onde acaba.
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