(sublinhados pessoais)
Filhos da fruta
Se no PS e no PSD não percebem que o Almirante vem para ocupar o espaço deles, então ainda não perceberam nada.
Ao caso deram o peculiar nome de “Tutti-Frutti”, o que me leva sempre a acreditar que deve haver poucos empregos mais divertidos do que o do cidadão que baptiza as operações policiais que nos enchem o espaço mediático, e é, todo ele, mais relevante do ponto de vista político do que criminal.
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O já velho e sempre cínico mantra de António Costa, «à justiça o que é da justiça, à política o que é da política», paira constantemente sobre todos estes casos judiciais e é, na verdade, revelador de um estado de coisas quase unanimemente considerado insuportável. A política, com recurso ao expediente de tal afirmação, depois de alguns anos a tentar a tese de cabala, acabou a ver-se livre dos problemas de uma forma bastante simples, em que qualquer problema de natureza moral ou ética passaria automaticamente para a esfera dos tribunais. A política não quis fazer o trabalho de se auto vigiar e judicializou a ética. O Ministério Público aceitou o repto. E, considerados os chamados «tempos da justiça», os casos morriam nos noticiários e terminavam, naturalmente, com absolvições ou condenações. No primeiro caso, não se verificando acto digno de censura criminal, o Ministério Público e a imprensa tinham feito um auto-de-fé público a um desgraçado, independentemente de a conduta em causa ter sido de ética, duvidosa ou censurável. Se se verificasse a condenação, o partido respectivo via-se definitivamente livre de um problema, que passava a ser de natureza meramente individual do agente criminoso, e não fruto, muitas vezes, de um contexto partidário e institucional que favorecia a prática em si.
Em boa parte das opiniões mediáticas, sempre ávidas de se afirmarem acima dos comportamentos animalescos e toscos do povo que lê a imprensa menos querida das elites, ganhou, entretanto, tracção a ideia de que o Ministério Público tem uma agenda. Não é inédito. De Otelo a Sócrates, passando pelos vários arguidos mediáticos que o país viu nas últimas décadas, todos eles se queixaram da agenda do Ministério Público, ignorando expressamente que os procuradores têm como função investigar, e os juízes julgar, e que processos que resultam em condenações e absolvições acontecem diariamente. Já não era bem uma cabala, era uma «agenda». Já para a lentidão dos processos, ninguém parece ter particular preocupação, excepto nas ocasiões em que se anuncia alguma investigação sobre uma personalidade do status quo. E sobre o facto de o poder político continuar a sacudir alegremente a água do capote da sua própria fiscalização e ética para cima do poder judicial, parecem ser ainda menos os interessados. Esta é a primeira nota.
É evidente que, tendo ou não o caso Tutti-Frutti alguma consequência condenatória, as coisas já começaram mal. Oito anos para deduzir acusação não é razoável. Mas, mais uma vez, o problema não é individualizado. Há arguidos constituídos todos os dias, anos infinitos de demora nas decisões, e esse é um problema demasiado sério que o país tem, sem o querer resolver. Deixo-vos aqui uma experiência pessoal. Há cerca de cinco anos, fui notificado para me apresentar numa esquadra da PSP, onde me dirigi de imediato. A agente da polícia deu-me umas breves indicações sobre a história que ali me levava e constituíram-me arguido, o que agradeci. Optei por não prestar declarações ali, e remeti, por escrito e com prova documental, ao Ministério Público a minha versão dos factos. Três anos depois, nada sucedera. E, por estar já cansado das obrigações decorrentes do termo de identidade e residência, um dia telefonei para a secretaria do DIAP e perguntei se havia novidades. Disseram-me que sim: o processo tinha sido arquivado uns meses antes, não estava acusado de nada, podia seguir a minha vida em paz e tranquilidade, mas não me tinha ainda sido enviada por correio a notificação com o respectivo despacho de arquivamento porque não havia papel no tribunal – chegaria cerca de meio ano depois. Ninguém neste país está a salvo de ser constituído arguido por ter sido alvo de uma queixa-crime qualquer, nem a salvo de se ver enfiado num buraco negro burocrático e judicial. Pessoas mediaticamente expostas não passam a ter direitos superiores aos dos restantes, que estão igualmente sujeitos aos mesmos novelos kafkianos. Esta é a segunda nota.
Dados os apontamentos iniciais, fica o problema político. De política pública, naturalmente, porque o país tem um problema crónico de lentidão judicial que parece materializar-se na eternidade. E da restante política, como não podia deixar de ser. Como disse, boa parte do problema reside no facto de a política e os partidos terem achado boa ideia oferecer o controlo ético da própria política aos tribunais. A restante parte é a que qualquer pessoa pode ver. Independentemente de haver acusações (e existem, neste caso em concreto) sem particular relevância criminal, ou até de condenação duvidosa, o que sobressai da Tutti-Frutti é um modus operandi que o país desconhecia em concreto, mas de que suspeitava largamente. Não é já segredo que, sobretudo nos grandes partidos, PS e PSD, poderosas redes de contactos, empregos, adjudicações, favores e controlo, tudo ancorado no Estado, se movem pelos bastidores da alta política, numa espécie de sub-mundo partidário, feito de desvalidos intelectuais e morais, produzindo líderes, deputados, vereadores, presidentes disto e daquilo. E não há uma alma neste país que, sendo dotada de algum nojo, sinta alguma vontade de participar politicamente em partidos que são, para lá das cúpulas que vemos nas televisões, manobrados por verdadeiras máfias de desocupados mentais e de indigentes a quem só a política e o partido salvaram da fome.
Não espanta, pois, que o país corra o sério risco de levar à segunda volta de umas eleições presidenciais um marujo que não abre a boca e o homem que grita sobre tudo, varre o seu próprio lixo para debaixo do tapete, e continua a apontar o dedo a todos aqueles de quem o país se vai cansando, PS e PSD. Os dois maiores partidos estão na rota descendente da sua vida, e talvez ainda não tenham percebido. Talvez já de nada valham as palavras de Hugo Soares, que forçou a saída do parlamento dos acusados na operação e recusa candidaturas autárquicas na mesma situação. O país, justa ou injustamente, já não olha para os Hugos Soares de forma diversa daquela com que observa o mais reles cacique de uma qualquer concelhia do seu partido. Se no PS e no PSD não percebem que o Almirante vem para ocupar o espaço deles, então ainda não perceberam nada. Mas não foi por falta de aviso.
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