domingo, 16 de fevereiro de 2025

Reflexão - Não se distraiam com as malas (Rui Ramos)

 (sublinhados pessoais)


Não se distraiam com as malas

Se um historiador, no futuro, quiser compreender o regime, vai ser muito difícil convencê-lo a não usar como fontes principais os casos Marquês, Influencer e Tutti Frutti. É a trilogia do regime.

Que um deputado dedique as suas horas vagas a roubar malas no aeroporto, pode ser vergonhoso ou até um bom pretexto para piadas. Sem dúvida que as direcções dos partidos, a quem o sistema político entregou a escolha dos nossos representantes no parlamento, deveriam gastar um pouco mais de tempo a escrutinar os candidatos que propõem aos portugueses. Mas entre 230 deputados, por mais apertado o crivo, terá sempre de passar alguma excentricidade ou aberração. Outra coisa, muito diferente, é o caso Tutti Frutti. Aí, não se trata de uma ou duas maçãs podres. Foi o cesto que apodreceu.

Se um historiador, no futuro, quiser compreender o actual regime, vai ser muito difícil convencê-lo a não usar como fontes principais os casos Marquês, Influencer e Tutti Frutti. É a trilogia do regime. Por causa dos meandros da justiça, não sabemos se vai haver condenação, ou sequer julgamento. Mas as provas e alegações judiciais não deixam dúvidas sobre o que está em causa. A acusação da operação Marquês apresenta-nos um primeiro-ministro e líder de um dos dois maiores partidos a conspirar para dominar bancos, empresas e órgãos de comunicação social. O que sabemos da operação Influencer revela que leis e regras só incomodam quem não tem o telefone de membros do governo. A acusação da operação Tutti Frutti sugere que a cidade de Lisboa bem podia ficar no clássico sul de Itália.

Há mais de dez anos que o regime tem andado a tentar não ver, não ouvir e não ler. No caso Marquês, finge-se que o problema era a personalidade do primeiro-ministro. Como se o que ele fazia, além do alegado aproveitamento pessoal, não tivesse uma dimensão política de abuso de poder, e, por esse lado, pudesse ser ignorado pelos seus colegas. No caso Influencer, têm-nos explicado que só para evitar que a burocracia impedisse um negócio de “interesse nacional”, é que os membros do governo se meteram por atalhos equívocos. Mas se a burocracia tudo bloqueia, porque não a mudam, em vez de a usarem como pretexto para deixarem os grandes negócios à discrição de ministros e secretários de Estado? Quanto ao caso Tutti Frutti, querem convencer-nos de que tudo está resolvido com umas suspensões de mandatos – mandatos obtidos em eleições a que a direcção do partido aceitou que os suspeitos fossem candidatos sabendo que eram suspeitos.

A democracia em Portugal está a ser subvertida pelas elites instaladas. Não estamos a falar só de corrupção, no sentido da prevaricação isolada de um ou dois indivíduos. Estamos a falar da subversão do regime pela sua própria classe política a actuar em rede, como uma mafia. Estamos a falar do cinismo de gente que, quando à vontade entre si, não esconde desprezar leis, regras, valores e instituições (“há massas para distribuir?”). Estamos a falar de dirigentes dos grandes partidos “fundadores” do regime que não levam a sério a democracia. Não são todos assim? Mas os que não são assim não parecem ter força ou convicção para resistir ao aviltamento.

Todas estas histórias são, no fundo, a mesma história. Na democracia liberal, é suposto a classe política ter menos poder do que em qualquer outro regime, porque o poder está dividido, sujeito a leis e procedimentos, e aberto a escrutínio. O que percebemos através destes três casos de justiça, é que o principal cuidado de uma parte da classe política, por interesse pessoal ou ganância de mando, tem sido ultrapassar essas limitações. Para isso, atropela leis, vicia procedimentos, e cultiva a promiscuidade.

Vivemos em democracia, mas nem toda a classe política é democrática. Não se deixem, por isso, distrair com malas. Os piores políticos não são aqueles de quem nós nos rimos: são aqueles que se riem de nós.

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