domingo, 16 de fevereiro de 2025

Reflexão - O primeiro presidente do século XXI (Rui Ramos)

 (sublinhados pessoais)


O primeiro presidente do século XXI

Trump não mudou o mundo. Está apenas a tentar adequar o poder dos EUA a um mundo que já mudou há algum tempo. O problema não é, como muitos gostariam de acreditar, um homem: é a história.

Primeiro, estranha-se, depois, entranha-se. Fernando Pessoa terá inventado a frase para promover uma bebida importada. Podia tê-la inventado para descrever a recepção, nos meios bem-pensantes, às declarações e decisões do presidente Trump. Primeiro, temos sempre indignações de bancada de futebol, com alguns desfalecimentos de teatro antigo. Ele quer tirar a Gronelândia à Dinamarca! Ele ameaçou o México com direitos alfandegários! Ah, a loucura. Depois, percebemos que a Dinamarca não está capaz de controlar a Gronelândia, ou vemos que o México, intimidado, se dispôs enfim a colaborar na contenção do tráfico de pessoas e drogas. E eis o que tinha sido acolhido como um capricho de Nero a ser reavaliado como o rasgo de um Bismarck.

Trump não mudou o mundo. Está apenas a tentar adequar o poder dos EUA a um mundo que já mudou há algum tempo. O problema não é, como os anti-trumpistas gostariam de acreditar, um homem: é, se quiserem chamar-lhe assim, a história. Há quem julgue que está a criticar Trump, e está apenas a criticar a mudança dos tempos.

O mundo de anteontem era melhor? Provavelmente. Mas acabou. O mundo de anteontem era o mundo da ordem mundial do pós-guerra, um mundo de leis e de organizações internacionais, em que era suposto os Estados, quando tinham queixas ou aspirações, discursarem na ONU, ou recorrerem aos tribunais internacionais. Qual o problema desse mundo? Este: assentava no poder dos EUA e da Europa. Era a projecção no planeta do Estado de direito desenvolvido nas sociedades do Ocidente. O resto do mundo sujeitou-se a essa teia jurídico-civilizacional, apenas porque não podia afrontar o Ocidente, ou porque precisava dos mercados ocidentais. Isto foi sobretudo assim após o colapso da União Soviética, em 1989-1991. No Ocidente, sabia-se que o resto do mundo era diferente, mas acreditava-se na globalização dos valores e modo de vida ocidentais. Promovendo a circulação de bens, pessoas e capitais, a China comunista acabaria por tornar-se uma nova Suécia, e o ayatollah Khamenei a versão muçulmana do Papa Francisco. A UE convenceu-se até de que podia desprezar a aliança americana e viver pacatamente de importar mão de obra do Magrebe e energia da Rússia.

Essa ilusão acabou. A globalização expandiu o consumo nos EUA e na Europa e resgatou milhões de pessoas da pobreza no resto do mundo. Mas também subverteu, através da deslocalização industrial e da imigração descontrolada, a coesão das sociedades ocidentais e confrontou o Ocidente com potências determinadas em revolucionar a ordem mundial, como a China, a Rússia ou o Irão. O Ocidente já não produz a maior parte da riqueza do mundo, como até 2005, nem as suas populações são as que mais se reproduzem, como quando colonizou as Américas. Essa ascendência era a base das regras e organizações internacionais. Era uma ordem que não traduzia a convergência definitiva do resto do mundo em relação aos valores ocidentais, mas apenas uma inibição temporária perante a força do Ocidente.

O século XXI não é o prolongamento da última década do século XX. Um sinal é a perversão das organizações internacionais, que agora, como o TPI, aplicam as suas severidades apenas às democracias do Ocidente. Aos países ocidentais, restam duas vias: ou iniciam uma guerra sem fim de liberalização do mundo, para que lhes faltam meios, ou dispõem-se a usar o poder que ainda têm para defender, sem equívocos, os valores e interesses das sociedades mais livres e prósperas que a humanidade inventou. Trump é o primeiro chefe de Estado ocidental a perceber isso. Não é garantia de que sempre acerte e de que tudo lhe correrá bem. Mas permite esperar que não cometa os mesmos erros dos seus antecessores.

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