sexta-feira, 25 de abril de 2025

Reflexão - Gonçalo Poças

 (sublinhados pessoais)


Digam qualquer coisa interessante

Será pedir muito que alguma alma que ainda insiste na política portuguesa diga alguma coisa de novo? Que nos tratem como se ainda estivéssemos acordados?

Voltei, no passado sábado, do Vale do Loire, depois de uma semana de férias. Por hábito de quem aprecia a sua rotina, desfiz as malas na exacta noite do regresso, mas talvez devesse tê-las deixado intactas, como quem aprecia o prazer perverso de adiar regressos.

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França tem os seus problemas, que não são poucos, mas tem sempre a grande vantagem de nos embebedar pela beleza, e não pelo tédio. Os franceses, não raras vezes, e talvez injustamente, acusados de arrogância e soberba, terão os seus defeitos comuns de civilização, mas possuem uma predisposição para o belo que apazigua. Ao invés, o nosso espaço público – e talvez também o espírito – é exclusivamente de uma sobrevivência funcional, nunca de um prazer ornamental. França faz das suas frustrações decoração; nós embrulhamo-las em papel de merceeiro. E adiante, antes que o leitor discuta – ou, pior, que se aborreça.

Ao fim de dois dias, esquecera-me a campanha eleitoral em que Portugal, mais uma vez, mergulhou. Recordei-a, com esforço, para participar num Contra-Corrente, da nossa rádio Observador. Tínhamos passado o pequeno-almoço a conversar, entre franceses, suíços e australianos, os problemas de cada uma das respectivas democracias. Entre problemas e desapontamentos idênticos, e sem que ninguém se assumisse de esquerda ou de direita, conservador ou progressista, globalista ou soberanista, lá fomos deixando soltar opiniões, quase sempre com medo injustificado de ferir susceptibilidades alheias. O resultado foi uma melancólica proclamação de afirmações de senso comum, de como ele parece fora de moda em quem nos deveria representar a todos, e um generalizado encolher de ombros de quem tem vontade de proclamar «é o que há, não é bom, mas que se há-de fazer?». Estando todos de acordo, acabámos a rir, quando um dos australianos, advogado como eu, contou o que disse a um dos filhos quando este lhe perguntou o que achava de seguir uma carreira jurídica: Son, do I look like a happy man? O rapaz reflectiu: He’s now a doctor. Subscrevi cinicamente a tese, abaixo o Direito, abaixo a Política, que ninguém é perfeito, engolimos mais um pedaço de pain au chocolat e fomos às nossas respectivas vidas, comigo já embrenhado, com esforço, em pensamentos sobre a nossa campanha eleitoral.

Mas qual campanha, santo Deus? Estamos em campanha, é um facto. Mas o país parece estar noutro momento político qualquer. Talvez o do vazio, resignado por ter de, novamente, votar onde sempre votou, mesmo que os rostos mudem e as cores partidárias se alterem. Quando não se muda de canal, assiste-se aos debates. Entre impostos baixos, reformas altas e proclamações várias, sobra um quadro político que parece viciado em «coisas boas», que todos merecemos, sem excepção. Nenhum dos candidatos parece acreditar no que diz — e nós acreditamos cada vez menos em quem diz seja o que for. Os debates são teatro de bonecos de corda, puxados por sondagens e alimentados a soundbites. E muitas «coisas boas», que as más não dão votos, dizem os especialistas. O que é que se propõe, afinal? Pouco. Como se propõe? Mal. A quem se propõe? A quem não muda de canal, de voto decidido não raras vezes há décadas. Os debates são um jogo de sombras num fundo de ecrã azul. Fala-se em impostos, em saúde, em educação, em habitação, como se estivessem a escolher pratos para um menu que ninguém vai cozinhar. Assisti, com dedicação, bravura e pouca glória a vários deles, indiferente, como quem revê um episódio de uma série que já cancelaram lá fora.

A última vez que senti que alguém dizia algo politicamente valioso em língua portuguesa foi quando li a entrevista de Maria João Avillez a Isabel Díaz Ayuso, e estava traduzida do castelhano. Parecia um milagre estar escrito em português, mas como era traduzido constatava-se que era bem real. Uma mulher viva, ordenadamente desordenada, livre. Alguém a falar com veemência, sem pedir desculpa, sem esperar aprovação. Presumo que tenha sido quase estrangeiro demais para ser publicado.

Talvez a culpa seja minha. Talvez esteja a pedir ao país um charme que ele nunca prometeu. Talvez espere uma política que não morre nos rodapés das televisões, na fila para votar ou no cheiro a carne assada partidária. Mas caramba — será pedir muito que alguma alma que ainda insiste na política portuguesa diga alguma coisa de novo? Que nos tratem como se ainda estivéssemos acordados?

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