sábado, 21 de junho de 2025

Reflexão - Grandes projectos ferroviários: investimento ou desperdício? (Mário Lopes)

 

(sublinhados meus)

Grandes projectos ferroviários: investimento ou desperdício?

O que o Primeiro-Ministro diz sobre captar investimento e melhorar a competitividade da economia é uma coisa; a política dos grandes projectos ferroviários é exactamente o contrário.

Os grandes projectos ferroviários em curso no nosso país, as novas Linhas de Alta Velocidade (AV) Lisboa-Porto e a parte portuguesa da Linha Lisboa-Madrid, que implicam gastos superiores a 10 mil milhões de euros, são um investimento ou um desperdício? A priori, ambas as respostas são possíveis. A resposta verdadeira depende de saber se estas linhas férreas vão ou não servir as necessidades da economia portuguesa e dos cidadãos quando estiverem em funcionamento. Com as características técnicas actuais destes projectos (que se poderiam corrigir), a resposta é claramente que não, estes gastos serão, em grande parte um desperdício de recursos. Por isso, nesta situação, estes gastos são essencialmente um conjunto de gigantescas dívidas escondidas que os Governos (os anteriores e o actual) pretendem deixar às gerações futuras, em vez de serem, como podiam ser, alavancas de desenvolvimento económico.

Passo a fundamentar. Em primeiro lugar esta não é uma questão apenas de ferrovia e das características técnicas dos projectos; é também uma questão económica, porque tem a ver com a satisfação das necessidades da nossa economia, tanto no transporte de passageiros como de mercadorias.

São conhecidos os constrangimentos ambientais e energéticos que a Humanidade enfrenta. Sabe-se também que uma das principais fontes de poluição são os transportes. Por isso as políticas da União Europeia para garantir a sustentabilidade do sistema de transportes da Europa passam por uma transferência significativa dos modos aéreo e rodoviário para os modos ambiental e energeticamente mais eficientes, que são o marítimo e o ferroviário, sendo este a espinha dorsal do sistema de transportes.

Sabemos também que, das exportações portuguesas, 70% são para a Europa, e destas, em valor, 80% são transportadas por rodovia. Como a competitividade do transporte de mercadorias de longa distância na rodovia está condenada pelas razões referidas, a competitividade de metade das exportações portuguesas está condenada se não se encontrar uma alternativa. A via marítima não é alternativa para grande parte das nossas exportações, por falta de frequência (espaçamento temporal de vários dias entre navios), tempo de percurso superior e necessidade de mais transbordos, principalmente para destinos que não estejam próximos dos portos europeus. A ferrovia é a única alternativa competitiva, e para este efeito, precisa de ser totalmente interoperável com as redes ferroviárias dos países de quase toda a UE.

Este é um assunto mais que estudado a nível internacional. Uma Linha para ser interoperável não pode ter obstáculos técnicos à circulação de comboios, ou seja, as caraterísticas técnicas das Linhas em todo o percurso têm de ser as mesmas. As principais são: sinalização e controle de velocidade, sistema de alimentação eléctrica, e bitola (distância entre carris). A mais importante (por afectar tanto o material de tração, as locomotivas, como o material rebocado, vagões ou carruagens) e difícil de resolver quando há diferenças, é a bitola. Este é nosso principal problema, porque em Portugal e na rede convencional espanhola a bitola é a ibérica (1668mm), e em quase toda a UE e na rede de AV espanhola é a bitola europeia (1435mm).

Ora como as novas Linhas a construir estão planeadas para ser em bitola ibérica, isto implica que não permitem o tráfego competitivo de mercadorias de Portugal para França, Alemanha, e quase toda a UE. Nestas condições a maior parte das exportações portuguesas perderão competitividade e será muito difícil a Portugal atrair e fixar investimento industrial. Por exemplo, há poucos anos foram anunciados cerca de 500 milhões de euros de investimento industrial em Portugal, todos na Auto-Europa, ou seja, numa fábrica já existente para produção de um novo modelo, e no mesmo período foram anunciados investimentos industriais em Espanha de 33 000 milhões de euros, tudo ou quase tudo em novas fábricas. Ou seja, a Espanha, com um PIB cerca de 7 vezes superior ao de Portugal, recebe 66 vezes mais investimento industrial. Embora os números referidos possam não ser exactos, a desproporção é gritante, e demonstra a incapacidade de Portugal atrair investimento num dos sectores da economia que paga melhores salários. Por exemplo, quantos investimentos como o da Auto-Europa, há cerca de 30 anos atrás, é que Portugal captou depois disso? Zero. Nestas condições, além de não captar investimento industrial, Portugal terá, pelas mesmas razões, muita dificuldade em fixar as indústrias que ainda cá estão. As empresas que exportam para a Europa só terão duas alternativas: ou a deslocalização, ou os baixos salários, para compensar os maiores custos de logística e transporte face à concorrência, em particular espanhola. E com baixos salários e empresas pouco competitivas, o Estado recebe menos impostos, o que se reflecte na qualidade dos serviços públicos (SNS, escola pública, pensões, etc.). Conclui-se assim que o que o Primeiro-Ministro diz sobre a vontade do Governo de captar investimento e melhorar a competitividade da economia é uma coisa, a política do Ministério das Infraestruturas para os grandes projectos ferroviários é exactamente o contrário.

Como é que os Governos têm justificado isto? Com argumentos mal fundamentados e com o facto de afirmar que a Espanha não tem planos para construir Linhas de bitola europeia para as nossas fronteiras. Ora, é óbvio que para que um Estado invista nas Linhas internacionais no seu território, tem de ter a garantia de que uma vez chegada à fronteira, cada Linha tem continuidade no outro Estado. Por isso, até parece que os nossos Governos têm razão. Mas a análise é superficial e leviana, porque omite as razões para a política espanhola, ou seja, é preciso conhecer os antecedentes. Na Cimeira de 2003 na Figueira da Foz, Portugal e Espanha fizeram um acordo para a construção de 4 linhas férreas entre os 2 países: Lisboa-Madrid, Aveiro-Salamanca, Porto-Vigo e Faro-Huelva, com calendário para algumas Linhas, sendo todas em bitola europeia. Em 2012, no auge da crise financeira Portugal não tinha hipótese de cumprir o calendário acordado. Era compreensível um adiamento, por exemplo até 2017. Em vez disso Portugal declarou unilateralmente que não cumpriria os Acordos, (sem limite temporal), ou seja, nem mesmo depois de sair da crise financeira. Posteriormente declarou que só iniciaria a construção das Linhas internacionais em bitola europeia depois da Espanha colocar a bitola europeia nas fronteiras. Assim, Portugal garantiu que quando as Linhas espanholas chegassem à fronteira não teriam continuidade um Portugal. Ou seja, quem renegou os Acordos da Figueira da Foz e teria criado a falta de vontade espanhola de fazer Linhas de bitola europeia para as nossas fronteiras, se existisse, foi Portugal. Ninguém ouviu o Governo espanhol dizer ou escrever isso, quem diz isso são os Governos portugueses e a IP. A realidade é diferente: em Maio de 2025 o Governo espanhol tornou público que até 2027 a Espanha quer concluir um Acordo com Portugal para passar a Linha Lisboa-Madrid a bitola europeia. Assim, confirma-se que também a atribuição de culpas a Espanha para não introduzir a bitola europeia na rede ferroviária portuguesa é falsa. Os Governos portugueses também têm argumentado que é preciso manter a bitola ibérica na nova Linha Lisboa-Porto para garantir que os comboios que andam nesta Linha podem usar também as Linhas existentes. Mas este argumento só tem sentido se se quiser manter a Linha eternamente em bitola ibérica porque este problema não desaparecerá no futuro. Isto contradiz frontalmente o que os Governos dizem à União Europeia e à opinião pública de que mudarão a bitola mais tarde, ou seja, põe em causa a credibilidade da argumentação dos Governos.

Além da questão da bitola, há outros erros (do ponto de vista do interesse público), deliberados, que tornam grande parte dos novos projectos ferroviários um desperdício. É o caso da nova Linha Lisboa-Porto. A construção pelo traçado previsto a sul de Soure, pelo oeste de Leiria, Carregado e daí para a Gare do Oriente pelas zonas montanhosas a norte de Lisboa na margem direita do Tejo, custará mais de 1500 milhões de euros a mais do que a alternativa. Esta passaria a leste de Leiria, em Santarém, onde atravessaria para as zonas planas na margem esquerda do Tejo para chegar até ao Novo Aeroporto de Lisboa (NAL), onde poderia ligar à Linha Lisboa-Madrid, se o traçado desta fosse corrigido para passar no NAL. Acresce que a Linha pela margem esquerda do Tejo, i) teria pendentes (inclinações) mais baixas, e por isso permitiria o tráfego competitivo de mercadorias, e ii) reduziria o tempo de percurso total para a imensa maioria dos destinos na região de Lisboa mudando a estação terminal da Gare do Oriente para Olaias (porque o aumento do tempo por o percurso pela margem esquerda ser mais longo seria inferior ao que se pouparia no Metro entre as duas estações, Oriente e Olaias). Os Governos ainda têm dito que se ia estudar uma ligação directa do Carregado ao NAL. Provavelmente esta ligação custaria mais de 1000 milhões de euros e serviria cerca de 10% dos passageiros da Linha Lisboa-Porto. Por isso, provavelmente nunca se fará. Assim, face à alternativa pela margem esquerda, o traçado que o Governo quer executar, é mais de 1500 milhões de euros mais caro, não permite o tráfego competitivo de mercadorias e a Linha Lisboa-Porto não passa no NAL. E isto é deliberado, porque o Governo conhece estas questões. É difícil fazer pior. Esperemos que os actuais titulares do Ministério das Infraestruturas, que já estão em funções há mais de um ano e tiveram tempo para começar a corrigir os erros do projecto, tenham a sensatez de corrigir os projectos dos troços não adjudicados da Linha de AV Lisboa-Porto, adoptando a bitola europeia e o traçado pela margem esquerda. Manter tudo na mesma com base no argumento da urgência e da possível perda de Fundos Europeus se houver adiamentos, são argumentos que derivam de os Governos não terem estudado as alternativas em tempo útil. Este seria um argumento espantoso, apesar de Governos anteriores o terem usado com frequência: um Governo apresentar a sua própria incompetência ao decidir sem estudar os problemas, como justificação para optar pelo que é pior para o país. Esperemos que isso não aconteça.

Será que o Primeiro-Ministro têm consciência do que está em causa nestes projectos? Se sim, porque não muda a política? E os partidos da Oposição, não têm tempo para pensar nos problemas do país? Porque estão calados e não alertam a opinião pública? Enquanto continuarmos com Governos (e Oposições) que não distinguem investimento de desperdício, que falam de modernização para justificar criar dívidas escondidas que comprometem o futuro, será muito difícil ou impossível inverter a tendência para Portugal se tornar o país mais pobre da União Europeia.

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