(sublinhados meus)
Processo revolucionário em curso
A seu tempo, o povo encontrará forma de se ver novamente representado nos seus valores e interesses por uma elite política e mediática na qual se reconheça.
Segundo Herder, outrora, os homens eram todos, completos, multi-dimensionais na medida em que, dentro de cada família, ou clã, se exigia que uma grande multiplicidade de tarefas fossem feitas simultaneamente pelas mesmas pessoas: os pais, por exemplo, além de maridos, eram também gestores, agricultores, guerreiros, membros dos corpos políticos da comunidade, empreiteiros e, em muitos casos como nos mais educados, igualmente poetas, filósofos, legisladores, músicos, matemáticos, cientistas, etc., etc.. Em particular, o homem virtuoso era educado para ocupar-se de todas essas artes e tarefas. Nesses tempos antigos, Herder argumenta, havia unidade, não apenas cultural entre os povos, mas, fruto dessa multi-dimensionalidade, também entre a teoria e a prática dentro das próprias pessoas, entre homem e cidadão, uma unidade que a divisão do trabalho do mundo moderno, entre outras coisas, veio destruir. Desde aí, depois da mecanização, da especialização, da divisão técnica, qualitativa, os homens tornaram-se, diz-nos ainda Herder, “metade pensadores e metade sentidores”, isto na medida em que só se pode sentir de facto aquilo que se faz, e aquilo que se faz, progressivamente, se reduziu cada vez mais a um pequeno nicho de especializada dedicação — especializada a prática da vida a uma pequena função, tudo o resto passa a ser teoria.
Há aqui, observa Herder, e parafraseando-o, algo de profundamente errado, pois que se tornou a sociedade moderna num aglomerado de moralistas que falam, mas não agem, de poetas épicos que cantam grandes feitos, mas que nada experimentaram de verdadeiramente heróico, de grandes e inflamados oradores que nunca fizeram nada a não ser discursar ou, num exemplo mais concreto, em arquitectos que, mesmo desenhando o pormenor do ladrilho de uma cozinha e a medida da torneira de segurança, na vida real, nunca fizeram massa, nunca assentaram tijolos e não conseguem de facto construir nada — nem sequer alisar reboco e estuque. No fundo, abriu-se o caminho a uma forma inconsciente de hipocrisia, senão mesmo devaneio, na medida em que, entre outras coisas, e também no mundo mais político, aumenta a distância que vai entre a palavra que se diz, pensa, ou escreve, e a consequência daquilo que se disse, pensou e escreveu.
Ao mesmo tempo, há uma crescente desresponsabilização, ainda para mais generalizada e socialmente transversal. Num exemplo prático, veja-se como o político, ou o comentador, pode ser um orador brilhante, pode exortar na TV todo um povo a levantar armas, a partir para a guerra, mas não deixa também de ser verdade que o trabalho da guerra é coisa para militares — historicamente tanto mais à frente da batalha quanto menos importância, poder ou dinheiro tiverem —, o que gera uma distância de segurança muito grande entre o à vontade com que o político ou comentador belicista brada pela luta, e o conforto do facto desse mesmo político, mesmo que inconscientemente, saber que nunca terá que travar qualquer tipo de combate. Era outro mundo, convenhamos, quando o líder político que chama o povo ao combate seria também ele o primeiro na linha da frente. O mesmo se passa por todas as cambiantes da vida social especializada, uma vida onde a responsabilidade dos actos se encontra mitigada numa infindável cadeia de comando em que apenas os elos mais fracos e rasteiros lidam com as consequências das decisões — e mesmo estes com o alívio próprio de se saberem completamente a alheios a qualquer tipo de responsabilidade naquilo que vão pondo em prática. Na verdade, num mundo altamente especializado, a responsabilidade é uma impossibilidade social: quem manda fazer não põe em prática e quem enfrenta as consequências do que foi feito não mandou fazer nada.
O mesmo se passa com as ideias e os grandes princípios políticos na medida em que também estes apenas são verdadeiramente sentidos por aqueles que os vivem na prática. Ora, essa prática, nos dias de hoje, reduz-se a uma bolha de discussão política entre políticos de carreira, gente que nada fez na vida além de varrer e financiar as sedes partidárias, e a opinião publicada, um rancho cada vez maior com o advento das redes sociais, e que não apenas se encontra completamente blindada face a qualquer responsabilidade real no mundo político — vivendo numa pequena realidade onde largamente todos se repetem uns aos outros em ondas sucessivas de unanimidade —, como, quer estando em funções públicas, quer em cadeiras giratórias de comentário na TV, progressivamente perora sobre aquilo que não entende, grita e moraliza sobre o que não compreende e especula sobre o mundo ao qual assiste, mas no qual não participa de facto, menos ainda para sequer sentir a responsabilidade das consequências daquilo que propõe. Pelo contrário, a responsabilidade do político é manter o seu cargo, e respectivo salário e posição, bem como a do comentador, concorrendo todos entre si para cair nas graças da multidão que, mesmo que sem disso se aperceba, continua a ser quem decide o sucesso e o fracasso de cada qual — no caso do político, votando; no caso do comentador, interagindo e tornando-o popular, nem que seja, como em muitos casos, porque o odeia, despreza e vilipendia. Mas no mundo moderno, as “visualizações” e os cliques contam todos, sejam eles por genuíno interesse ou profundo desdém pela personagem que perora na TV ou larga dislates no X.
Nesta medida, há algo de profundamente artificial em todos os grandes moralistas políticos que se alçam às mais altas instâncias do mundo mediático para encarnar os grandes princípios da liberdade, igualdade e fraternidade que, na verdade, do conforto dos seus apartamentos atapetados e com temperatura controlada por remoto, apenas repetem e já não compreendem verdadeiramente. Nas suas propostas normalmente infantis, coisas próprias de quem imagina o mundo perfeito e facilmente resolúvel se apenas as suas opiniões fossem ouvidas e postas em imediata prática, os princípios, coisas que têm como inabaláveis e inquestionáveis, harmonizam-se em fórmulas salvíficas que apenas requerem inteligência, dignidade e boa-vontade — “se fosse eu a fazer e não aquele, tudo seria melhor”, eis o lema, bem como, hoje em dia, já o mais banalizado e repetido slogan eleitoral. Esta falácia, própria dos adolescentes, é muito mais generalizada do que se imagina, afinal, por um lado, o valor político advogado — a liberdade, a igualdade, a segurança, etc. — é máximo, indiscutível, dogmático mesmo, pelo que basta a sua evocação, como que a um mito fundador ou a um santo milagreiro, para que a solução política do predicamento apareça também como imediata, pelo outro, se as coisas não correm bem é necessariamente por erro, incompetência ou, eventualmente, má-vontade — sempre dos outros, naturalmente. Assim, a política se resume ao slogan, aos grandes valores e princípios advogados na teoria, por incompetentes, sem que verdadeiramente da discussão política saiam verdadeiras alternativas políticas práticas reais e exequíveis.
Décadas de paz e abastança não ajudaram. Entre o conforto de falar e não ter que fazer, junto com a ilusão de que o mundo inteiro se guia pelos mesmos princípios que a bolha mediática europeia, há agora todo um manancial de opinião “especializada”, ociosa, tida como letrada e intelectualmente superior, que, sem qualquer responsabilidade por aquilo que diz salvo no seu ultra especializado nicho, se imagina conhecedora do mundo e capaz de o resolver. Infelizmente a realidade é mais complicada do que esse mundo que aparece tão simples e cristalino nos ecrãs dos programas de comentário e opinião. Desde logo, quer o herói do comentário — agora já em número tão largo que aparecem aos magotes em simultâneo no ecrã, assim ao modo de conversa de Zoom — quer o político de carreira partidária, ambos ignoram que os valores que tanto citam, normalmente de cor, são luxo de sociedades altamente civilizadas onde, por tácito contrato, se decidiu deixar o poder bruto e cego da força, junto com os coldres, à porta das tabernas e decidir as coisas comunitariamente através do diálogo, negociação, compromisso e livre troca de ideias.
Ora, tal feito, em escala política único ao Ocidente, criou a ilusão nesta mescla de jornalistas, caciqueiros e comentadores digitais europeus de que apelar aos valores e aos fundamentos da civilização ocidental — princípios que no resto do mundo não significam nada, em particular naquelas partes do mundo onde o Ocidente é visto com inveja e incompreensão por parte de mentalidades que não conhecem nada mais além da miséria, da violência e da guerra — é o suficiente para colocar todo o mundo a toque de caixa dos caprichos e vontades dos teclados ocidentais. Pura estupidez, obviamente. Depois, uma segunda razão insufla esta alienação: as forças armadas dos Estados Unidos da América. Durante anos, décadas e décadas aliás, os políticos europeus, com as costas providencialmente aquecidas pelo poderio militar americano que, através da NATO e do seu Artigo 5º, os protegia das vontades e rivalidades internacionais, entretiveram-se a gastar o que tinham e não tinham em promessas eleitorais pejadas de regalias, direitos e “estado-social” que habituaram os génios da opinião europeia ao bem-bom da vida regalada, abastada e ultra-protegida. No final, tanto o herói do comentário, putativo futuro deputado ou ministro, como o deputado e ministro, putativo futuro comentador televisivo, comete dois erros fundamentais na percepção do mundo que nos rodeia: primeiro, provinciano, parolo, imagina o mundo inteiro guiado pelas mesmas regras que a redoma Ocidental; depois, toma a normalidade de décadas de abastança e paz como consequência da imposição dessas mesmas regras, e não do facto de por trás das muralhas que protegem as suas ruas estar a mais avançada e poderosa força militar da história da Humanidade.
A coberto destas duas ilusões, floresceu o combate de “causas” e de “valores”, tão ilusórias quanto o mundo sobre o qual versam, é certo, mas, não obstante, a seu tempo, tornadas doutrina. No entanto, e regressando a Herder, uma vez que as doutrinas se afastem cada vez mais da realidade — a tal separação entre teoria e prática —, mais aquelas são aceites acriticamente, já apenas por hábito e sem real sentida devoção — “verdades” dogmáticas, inalteradas e eternas —, mas que, tal como os moralistas que não agem e os políticos belicosos que não lutam, se tornam inevitavelmente fórmulas mortas, caducas, com o seu significado terrível e progressivamente distorcido. Estas ossificações e perversões teóricas conduzem então ao absurdo no pensamento, bem como a comportamentos monstruosos na prática, isto porque, ao pairarem por cima de todos como as divindades protectoras e fundadoras da civilização, mas não sendo confrontadas com uma realidade que lhes ofereça um real significado partilhado, acabam podendo significar tudo e o seu contrário — um bom exemplo da perversão do princípio em nome do princípio é a actual ideia peregrina de instalar a censura para salvar a liberdade expressão.
No mundo real, vontades e valores colidem uns com os outros, exigências igualmente justas competem por recursos escassos, gerando conflitos sociais que, ao contrário do que os comentadores e politiqueiros que mais não fazem além de opinar e comentar, são a base natural de qualquer sociedade humana. Os valores e princípios, esses, agem como faróis, apontam direcções, mas cabe sempre aos homens tomarem as decisões, escolherem entre as diversas possibilidades, decidirem se preferem ter sol na eira ou chuva no nabal, e aceitarem em cima dos seus pequenos ombros as respectivas responsabilidades pelas consequências dessas mesmas escolhas e decisões — algo que como vimos na sociedade complexa moderna é também cada vez mais difícil.
Chega-se, assim, ao ponto onde, mais coisa menos coisa, estão as democracias liberais europeias: lados extremados em função de valores e princípios altíssimos, mas que ninguém cumpre, uma incapacidade completa para reconhecer a realidade dos problemas fundamentais que se atravessam no nosso caminho e uma clique ultra-especializada, largamente ignorante apesar de histérica, que, não sendo capaz de ver o mundo para lá do seu especializado umbigo, já não reflecte o mundo real tal qual ele é, deixando de cumprir a sua função de plataforma de diálogo, compromisso e negociação prática, bem como de introspecção teórica. O processo, em franca aceleração como se pode verificar pelo nível absolutamente deplorável das redações e sedes partidárias, não pode durar eternamente: a seu tempo, o povo encontrará forma de se ver novamente representado nos seus valores e interesses por uma elite política e mediática na qual se reconheça. Daí, se a elite actual insistir na sua estratégia de vituperação e desvalorização do povaréu deplorável que não vê a luz que o esclarecido escol social lhes pretende enfiar pela goela e os olhos dentro, não se iluda o leitor de que o eles mais fraco seja o povo, porque não é — é a turba mediática e política que será pura e simplesmente substituída.
Regressando ao mundo real, e comprovando o ponto, nos EUA o processo já fez o seu ponto de viragem, assim se desenhando um novo mundo que os Europeus nem sequer reconhecem, menos ainda estarão preparados para enfrentar. Já em Portugal, arrabalde genericamente alienado, mas onde se adora copiar modas estrangeiras, a revolta já vai nos 23%. Pena é que, como lembrava Eça, a importação, porque artificial, nos fique naturalmente curtinha nas mangas, no caso, sem ideias, sem substância, sem estratégia, sem Norte, sem coerência e, pior ainda, sem qualquer noção das dificuldades e dos desafios que o novo mundo trará com ele — no final, nada de novo, a tragédia do costume.
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