(sublinhados pessoais)
E a banda continua a afundar
Quando somos nós, sociedade civil, a criar, no século XXI, associações cujo fito é taxar fotocópias de partituras, estamos conversados.
Eu sei. Talvez a história que ande a abrir telejornais. Mas, no fim, pode ser que concorde comigo. Há nela qualquer coisa eloquente acerca da tragédia da nação.
O caso, de vez em quando, voltava às caixas das breves e foi a recorrência a fazer com que, um dia, finalmente abrisse para ver de que se tratava: a Iniciativa Liberal andava a lutar pelo direito das bandas filarmónicas a poderem fotocopiar as partituras que tinham previamente comprado.
Certo. Não estamos a falar de reprodução ilegal de música, de downloads ilegais de canções na internet para reproduzir no bar ou na discoteca que cobra 14 euros por gin e não quer gastar um cêntimo com esse pormenor dos músicos, não estamos a falar de nada disso. Estamos a dizer que, em Portugal, em 2025, uma banda filarmónica de miúdos ou adultos amadores não pode, legalmente, usar uma fotocópia de uma partitura que – vamos repetir – já comprou, para a usar em ensaios ou animar a festa da aldeia, sem risco de a ver destruída pela chuva ou levada pelo vento, perdida ou danificada pelo mero manusear da mesma.
Com certeza uma lei antiga, pensámos. Algum resquício de legislação pesadíssima do século XIX. Não contávamos que tivessem de ser esses falcões do neoliberalismo, sempre alegadamente tão insensíveis ao povo e à cultura, a corrigi-la, mas seja bem-vindo quem vier por bem. Certamente, era coisa para se resolver depressa na Assembleia e até de sorriso no rosto, na pausa entre discussões dos temas “sérios” e “fracturantes”.
Sucede que estamos em Portugal, onde nunca nada é simples – “isso”, como gostamos de dizer com triunfante gozo perante a exasperação alheia, “é que era bom”. A iniciativa até foi aprovada, até desceu à especialidade, mas como, entretanto, o Parlamento foi dissolvido, voltou tudo à estaca zero. Está assim explicado porque nos continuávamos a cruzar com títulos sobre o assunto nos rodapés dos noticiários. Há dias, já no novo Parlamento, a IL voltou a apresentar a proposta para alterar o artigo 81.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos. Vamos ver no que dá, mas, pela imprensa, já sabemos que contará com a firme oposição da AD EDIT, associação para a qual, segundo noticiava há dias o Público, liberalizar cópia de partituras será como “legalizar a pirataria”.
E pensa o ilustre leitor: ah, agora sim descemos ao século XIX – trata-se, certamente, de alguma associação antiquíssima que zelava por estas coisas dos direitos de autor no tempo da grafonola e não se adaptou aos tempos modernos. Pois. Não é. A AD EDIT, Associação de Editores de Partituras e Compositores, foi, lê-se no sítio da internet, criada em Novembro de 2023, com a missão de “assegurar uma eficaz protecção dos direitos dos compositores e das editoras, das suas obras, no que respeita à reprodução não autorizada de partituras”.
Como sobreviveram os herdeiros de Beethoven até Novembro de 2023 sem a protecção da AD EDIT, não sabemos. Quem foi que se sentou a pensar, em Novembro de 2023 – quando levamos já duas ou três décadas de pirataria informática e a luta pelos direitos de autor já não está sequer no lado dos downloads ilegais, mas no da remuneração pelas plataformas de streaming, uso e abuso de conteúdos por plataformas de busca, redes sociais e, agora, perfeitamente devassados pela inteligência artificial – , que o que era preciso travar era o fotocopianço descarado de partituras por esses fora-da-lei das bandas filarmónicas, também não sabemos nem queremos saber. Sabemos que é o que temos no Portugal de 2025: uma associação recém-criada com o propósito de exigir uma taxa anual a bandas de crianças, jovens e amadores pelas cópias físicas ou digitais que desejem fazer das partituras que – não sei se já referimos – já compraram.
Há cerca de 700 bandas filarmónicas em Portugal, muitas delas em actividade há mais de 100 anos. Nasceram sob a liderança de professores primários, padres, meros curiosos, figuras das comunidades em geral que as criaram com o fito de animar as festividades locais, acompanhar romarias, levar instrução musical aos jovens, ocupação dos tempos livres ou simples paixão. Hoje, já vão conhecendo outras lideranças, maestros com formação específica, outros conhecimentos e capacidades técnicas, felizmente justificadas pela evolução socioeconómica do país. Mas continuam a ser o que sempre foram: uma espécie de conservatórios populares.
Vivemos num país que não consegue gastar o dinheiro que a Europa lhe dá porque não é capaz de cumprir a tempo todos os trâmites burocráticos que criou para os processos de atribuição. Que assiste, paralisado, ao sucessivo quebrar de recordes na subida dos preços das casas, enquanto continua a sufocar a construção de novos imóveis com toda a espécie de entidades, vistorias, licenciamentos, autorizações de câmaras, polícias, CCDRs, autoridades ambientais e arqueológicas, associações de moradores e abaixo-assinados em geral. Gostamos de culpar os políticos por isto – às vezes, especificamente o neoliberalismo (como se alguma vez esse cometa tivesse passado sequer ao largo das Berlengas). Mas, quando somos nós, sociedade civil, a criar, no século XXI, associações cujo fito é taxar fotocópias de partituras, estamos conversados quanto à origem do problema. Está-nos na massa dos ossos. Somos pequenos em dó menor.
Um dia destes, vamos a enterrar. E não vai haver dinheiro para pagar sequer a “Marcha Fúnebre” ao Chopin.
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