quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Reflexão - A razão e a necessidade (Miguel Morgado)

 (sublinhados pessoais)


A razão e a necessidade

O problema é que a Europa está demasiado fraca para se decidir. As suas elites não sabem o que querem porque não sabem o que são, nem o que representam.

No último Conselho Europeu a figura da “cooperação reforçada” foi avançada para contornar um problema político sério. De um lado, a Bélgica opôs-se ao confisco de activos russos em jurisdições europeias para financiar o custo da guerra na Ucrânia. Do outro, uma vez tornada invencível a oposição belga, e optando pelo plano B da emissão de dívida europeia conjunta, Hungria, Eslováquia e Chéquia obtiveram garantias de não vinculação financeira como contrapartida para não fazerem votos formais de oposição. Seja como for, o dia foi importante.

Primeiro, porque as carências financeiras ucranianas ameaçavam a sua capacidade efectiva de combate. Segundo, as oposições internas à cooperação com a Ucrânia em matéria militar vão-se cristalizando. Terceiro, as lideranças da União (Merz, Macron, Tusk, Meloni e mais umas quantas inexistências) perceberam que, no actual contexto geopolítico, uma não-decisão neste Conselho seria um sinal terrível de fraqueza. Quarto, tornou-se patente que as necessidades financeiras da Ucrânia voltarão a agigantar-se. Os 90 mil milhões de euros a ser emprestados agora cobrem apenas as necessidades ucranianas até ao final de 2027. Todos esperamos que a guerra esteja resolvida até lá. Mas já se percebeu que, uma vez concluída a guerra, teremos de fazer arrecadar tremendos recursos financeiros para a reconstrução da Ucrânia, e não serão nem os Americanos, e muito menos os Russos, que aliviarão a Europa desse fardo. Se a guerra prosseguir ou se ela finalmente terminar, a Europa estará sozinha nesse esforço de financiamento.

Contudo, esta crise geopolítica, com incidência na Europa e em vários outros pontos estratégicos do globo, está a pressionar a União para se decidir. O cerco ideológico, militar, diplomático, económico, tecnológico e demográfico ao continente vai-se apertando a cada hora. Os inimigos externos e internos da Europa farejam e denunciam as suas fraquezas todos os dias. O problema é que a Europa está demasiado fraca para se decidir. As suas elites não sabem o que querem porque não sabem o que são, nem o que representam. Há muito tempo decidiram abandonar o que tinham à sua responsabilidade em troca de uma vida paradisíaca no conforto do mundo cosmopolita recheado de belos princípios humanitários em que nem os próprios acreditam, mas têm de repetir acefalamente, e, o que não é de somenos, de contas bancárias agradáveis.

Teria sido melhor que uma União política tivesse deixado as suas unidades nacionais e soberanas sobreviver e vicejar na história. Mas, por vezes, a geopolítica comanda as possibilidades políticas internas. Hoje, a Europa sente-se na posição precária de quem está a meio da ponte. Já retirou demasiadas prerrogativas soberanas aos seus Estados-membros para que estes possam fingir gozar de grande independência. Ao mesmo tempo, a fragilidade geopolítica de cada um dos Estados-membros individualmente considerado revela-se todos os dias um espectáculo penoso.

Porém, a União também ficou aquém da centralização do poder executivo, legislativo e regulatório indispensável para poder agir em bloco à semelhança dos seus competidores geopolíticos. Há umas quantas almas que aplaudiram comovidos a perspectiva de uma nova emissão de dívida. Julgam que a emissão de dívida conjunta é o alfa e o ómega da resolução política. São ainda os ecos da conversa infantil dos anos da crise do Euro sobre o putativo “momento hamiltoniano”, que na altura contou com muitos interlocutores que sabiam pouco de política e nada de história americana. Erro deles. A constituição de uma União política centralizada à escala continental pressupõe muito mais do que isso.

Dizem-nos que a União Europeia tem de ser uma “unidade geopolítica” ou desfiar-se-á em tempos geopolíticos como os nossos. É bem provável. Mas é preciso perceber que um tal salto não geraria as consequências benévolas que dele se esperaria sem que as fracturas sociais cada vez mais expostas das sociedades internas dos Estados-membros sejam atendidas. A política nacional dos Estados-membros está fragmentada e, com pouquíssimas excepções, sofre uma crise de desconfiança e de cepticismo incompatível com grandes ousadias. As lideranças não confiam em si mesmas e partilham em graus variáveis da intoxicação ideológica que fez a Europa duvidar do seu direito de existir como Europa – e não como outra sociedade qualquer – no mundo.

Há muita sabedoria na cabeça de quem disse que “o que não te induz a razão, induz-te a necessidade”. Mas a resposta à “necessidade” tem sempre uma amplitude angustiante de criatividade e qualidade. Nos próximos 10 anos teremos de tomar decisões políticas determinantes. Convém que tanto os governantes como os povos europeus estejam à altura do que lhes vai ser exigido.

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