sábado, 1 de agosto de 2015

Reflexão-Hugo Gonçalves


Revistas cor-de-rosa

Devemos suspender aquilo em que acreditamos, bem como os nossos princípios, porque faz calor, estamos de férias, vamos à praia e comemos mais peixe grelhado? Pode até ser aceitável que nos apeteça, durante um par de semanas, não saber que crianças morrem na Síria. Todos temos direito a um alívio da engrenagem inelutável do planeta e do imperfeito comportamento dos homens, mas há limites para o estado de alienação e para a apetência para a estupidez.
Há alguns anos que deixei de folhear as revistas cor-de-rosa (que prefiro chamar, daqui em diante, de revistas cor de merda, esperando ser assim mais fiel ao seu conteúdo), e nunca fui vulnerável aos argumentos "é só para passar o tempo", "para me rir um bocado", "isto não faz mal a ninguém". Mas faz. Em primeiro lugar, além de danificarem a língua portuguesa e todas as árvores cortadas para fazer papel, estas publicações mentem, descarada e impunemente, compram fotos amadoras de telemóvel, tiradas à socapa e com má-fé, e ainda que os seus "jornalistas" tenham carteira profissional, são uma versão atualizada das alcoviteiras, protagonistas do pequeno poder dos porteiros de discoteca com aspirações a Tony Soprano.
As notícias do internacional são escolhidas de acordo com a qualidade das fotos de agência (mulheres bonitas) ou com a esqualidez das mesmas (a bebedeira de um famoso). As legendas e os textos são muitas vezes inventados, sem qualquer matéria factual.
Quando se trata de atualidade nacional, trabalham um pouco mais, vão aos eventos patrocinados por marcas, em que atrizes de novela são pagas para sorrir sempre que um flash dispara. Os seus fotógrafos-abutres escondem-se nas dunas da praia (que triste profissão) para conseguir captar um par de mamas célebre ou insinuar a homossexualidade de alguém usando eufemismos tão tolos como repetidos ad nauseam - "Foram vistos em clima de cumplicidade."
Na praia, ouvi um grupo que comentava a hospitalização de uma jornalista, a quem morreu o filho no ano passado, dedicando-se a fazer juízos ou alegando "ela pôs-se a jeito". Não se trata apenas de voyeurismo sem danos. E mesmo aqueles que se põem a jeito - parece, por exemplo, que há famosos que combinam com os paparazzi -, não cancelam a obrigação, de quem faz jornalismo, de ter cuidado com aquilo que escreve. Porque assinar um texto numa revista não é o mesmo que ser inquisidor do Santo Ofício. Ter acesso a certas pessoas não é o mesmo que fazer parte da vida íntima dessas pessoas.
O que as revistas cor de merda fizeram com essa jornalista, que aparece agora em todas as capas, é a exploração do luto e do desespero, a falta de compaixão e respeito pelo outro, a vontade de espremer para sair mais sangue e lágrimas e desgraça. E toda essa porcaria transfere-se para aqueles que, no consultório do dentista ou no areal, suspendem a decência e se lambuzam na miséria glamorizada, em páginas tão brilhantes e cortantes que nem servem para limpar o rabo.
Se fico intrigado por saber como esses jornalistas, editores e fotógrafos dormem à noite, também me espanta que os leitores justifiquem ser cúmplices de algo sujo. Lixo vai haver sempre, já se sabe, e quem é que abdica totalmente do prazer culpado de comer um Big Mac, usar roupa barata feita por operários explorados ou participar numa conversa sobre o divórcio de um casal hollywoodesco? Poucos serão monges austeros da virtude, mas, então, que os leitores dessas revistas sejam mais como os defensores da tourada que, estando completamente errados, celebram orgulhosamente o sangue e o sofrimento com que regozijam. Comprar e ler essas publicações, mesmo na dormência do verão, não é apenas entretenimento, é uma cobardia preguiçosa.
Embora com rodagem suficiente para saber evitar certos lugares, fui bater com as costas num desses bares da moda do Algarve, e percebi que estava numa espécie de materialização das revistas cor de merda: ex-mulheres de futebolistas, estrelas de reality show que ainda não perceberam que nenhum homem deveria usar gel depois dos 13 anos, um serviço arrogantemente mau e garrafas de champanhe que eram levadas para a mesa com um pauzinho flamejante, porque o exibicionismo parolo é mais um acessório a juntar ao carro e ao relógio gigante.
É certo e sabido que, tal como o universo, a estupidez humana se expande continuamente. Mas a leveza do verão não é o mesmo que uma licença para a burrice e o mau carácter; abraçar a efemeridade do prazer não exige um estilo de vida tão falso e pomposo como uma carteira Fendi dos chineses.
No dia seguinte, entrei numa estação de serviço e reparei numa prateleira vazia: as revistas cor de merda tinham esgotado. Não foi preciso muita investigação. Encontrei-as todas na praia.
P.S. - Obviamente, e apesar da diferença do formato, o Correio da Manha (sem til) e a Correio da Manha TV fazem parte da mesma espécie.

Hugo Gonçalves no DN

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