quinta-feira, 6 de julho de 2017

Capuchos - Mariana Alcoforado

02.07.2017 - Soror Mariana Alcoforado (Ópera)











Neuza Magalhães (Expresso)

São 22 profissionais e 84 amadores os que participam na ópera “Soror Mariana Alcoforado”, que esta sexta-feira, 16 de junho (e com repetição a 17 e 18), tem marcada a estreia mundial no Convento dos Capuchos. Nesse momento, chegará ao fim um processo posto em marcha há seis meses, quando a Câmara Municipal de Almada e a Musicamera Produções encomendaram a obra ao compositor Amílcar Vasques-Dias e abriram as portas daquilo a que chamaram “residência artística para a construção de uma ópera”.
“Um projeto como este não depende dos resultados, mas também da importância do processo. Um não existe sem o outro“, explica Brian MacKay, o diretor musical e coral que desde janeiro está a trabalhar com os músicos ao lado de F. Pedro Oliveira e Aldara Bizarro, responsáveis pela encenação e o movimento. Das mais de 70 pessoas que apareceram nas quatro audições, cerca de 30 foram escolhidas, e destas ficaram 22, com idades a oscilarem entre os 13 e os 70 anos. Porém, a comunidade participa também na elaboração dos figurinos, dos vídeos — está presente em toda a parte técnica, lado a lado com os profissionais.
“É muito gratificante“, diz F. Pedro Oliveira. “A maioria não está porque quer ser artista, mas para se divertir, para usufruir de uma experiência. E isso é ótimo.” E se no início se deparou com algum pudor por parte do grupo, as barreiras foram-se quebrando ao longo dos ensaios. Nos primeiros meses, esse foi o principal objetivo, conseguido graças a 12 workshops com ênfase na expressão corporal, no improviso e no movimento. Mas rapidamente Pedro sentiu a atmosfera distender-se: “As pessoas vão-se conhecendo, começam a dar boleia umas às outras, cria-se uma amizade.”


A ópera foi sendo montada através de uma residência artística, com 12 workshops de teatro e música 
Neuza Magalhães 

Ao mesmo tempo, Brian MacKay ia trabalhando as vozes. “Era preciso treinar as competências do canto coral, que não é um canto a solo. No caminho, muitos jovens revelaram um potencial incrível, enquanto os mais velhos traziam a sua própria experiência de vida”, conta o maestro. Alguns nunca tinham cantado e esta ópera representou uma primeira vez. Seis meses passados, é “incrível” o que conseguiram. Para Brian, talvez a parte mais difícil tenha sido estar a ensaiar o grupo enquanto a música estava a ser criada e o libreto escrito. “Tudo acontecia em simultâneo, pelo que eu próprio desconhecia o que viria a seguir.”
E a seguir viria a música, que Amílcar Vasques-Dias compunha em estreita colaboração com a libretista e sua mulher, Helena Nóbrega. O tema que lhes fora proposto era a história de Mariana Alcoforado e as cartas de amor que terá ou não escrito a Noël Bouton, Marquis de Chamilly — que se tornaria Marechal de França durante as Guerras da Restauração —, e em 1669 editadas em Paris sob a forma de um romance epistolar intitulado “Cartas Portuguesas”. “É uma história forte, polémica, cheia de contrastes psicológicos, de tristeza, de alegria, de sensualidade, de dramatismo”, diz Vasques-Dias. A tais mudanças, a música de raiz contemporânea respondia introduzindo o flamenco, o jazz, o canto gregoriano. E o cante alentejano, que surge em evocação das raízes de Mariana Alcoforado, nascida em Beja em 1640 e aos 16 anos ingressada na clausura da Ordem de Santa Clara, onde morreria em 1740, aos 83 anos.


“A maioria não está porque quer ser artista, mas para se divertir, para usufruir de uma experiência”, explica o encenador, F. Pedro Oliveira 
Neuza Magalhães

O compositor revela que o cante está presente na música de duas formas: como citação na própria partitura e como elemento cénico. “O cante surge como algo estrutural na composição, mas também é entoado pelo grupo Cantares de Évora, cujo 'cantador-alto', Pedro Calado, também desempenha a personagem do pai de Alcoforado”, explica, revelando-se “orgulhoso” com o resultado. “Comove-me assistir aos ensaios e ver a capacidade e a força de vontade destas pessoas, pois algumas partes não são fáceis nem sequer para os profissionais. Tiveram de aprender um texto, uma partitura e seguir um encenador. E isso é espantoso”, confessa.
Com um elenco profissional formado por Natasa Sibalic no papel de Mariana Alcoforado, Manuel Caldeira, Telma Valente de Almeida e Maria João Augusto, há também uma pequena orquestra especialmente criada para a ocasião. E desta fazem parte Luís Pacheco Cunha, André Fresco, Chiara Antico, Catherine Strynckx, Alejandro Erlich Oliva, Andrew Swinnerton, Paulo Gaspar e Agostinho Sequeira. A figurinista é Maria Luiz.
Depois da primeira edição em Paris, as “Lettres Portugaises”, atribuídas a Mariana Alcoforado, acenderam e mantiveram a discussão sobre a veracidade da história, sendo reeditadas uma centena de vezes até 1800. Em Portugal, aparecem em 1824 — e a sua receção não foi menos controversa. Figuras importantes tiveram algo a dizer ao seu respeito, como Pinheiro Chagas, Camilo Castelo Branco ou Alexandre Herculano. Nunca ficou claro quem escreveu as cartas, se é que foram escritas. Mas a sua popularidade foi tal que elas são lidas até hoje. Em 1972, três séculos após publicadas, inspiraram as “Novas Cartas Portuguesas”, escritas por Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa. São 120 textos de crítica social, que não podiam deixar de fora o papel da mulher na sociedade de então.

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