terça-feira, 4 de julho de 2017

Medina Carreira (1931 - 2017)





Medina Carreira, o homem que não tinha medo de morrer

Augusto Mateus lembra o antigo ministro das Finanças como um homem preocupado com o país e com a melhoria do mesmo
Após um mês de internamento, faleceu esta segunda-feira num hospital de Lisboa vítima de doença prolongada, aos 85 anos, Henrique Medina Carreira, ministro das Finanças do I Governo Constitucional.
Em 2009, numa entrevista concedida a Anabela Mota Ribeiro, teve uma declaração rara sobre a morte. "Não tenho vontade de morrer, mas não é da morte que tenho medo: é da maneira de morrer. Defendo que desde a nascença devíamos ser portadores de uma ampola com cianeto de potássio. Os nazis andavam com uma. Quando dava para o torto, dentavam e caíam para o lado. Acho que devíamos ser senhores do nosso fim", disse na altura.
O homem que adorou ser, em 1975, sub-secretário do Orçamento no consulado de Pinheiro de Azevedo e detestou ser ministro das Finanças, de 1976 a 1978, no Governo liderado por Mário Soares era conhecido pelas opiniões assertivas e por ser um crítico da política despesista dos últimos governos da República. "Eu não sou candidato a nada, e por conseguinte não quero ser popular. Eu não quero é enganar os portugueses. Nem digo mal por prazer, nem quero ser popularucho porque não dependo do aparelho político!", gostava de referir.

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O antigo ministro da Economia, Augusto Mateus, ressalva a coragem de Medina Carreira e confessa uma aproximação ocorrida nos últimos anos. "Conhecia muito bem. Éramos amigos, apesar da nossa diferença de idades. Ao longo das últimas décadas fizemos uma aproximação, falávamos e era uma pessoa pela qual tinha grande apreço e respeito. Sempre foi uma pessoa que nunca teve dificuldade em expressar com coragem as suas opiniões e essa é uma qualidade que aprecio muito, independentemente de concordar ou não. Era um homem que falava em função da experiência que tinha sobre os assuntos, preocupado com o país e com a melhoria do país", disse ao DN, acrescentando ainda que Medina Carreira deu contributos relevantes relativos à "procura da eficiência e ao equilíbrio da gestão da coisa pública".
Quem olhava para Medina Carreira via um economista. Sim, formou-se em Economia mas antes disso fez um bacharelato em engenharia mecânica, tirou os cursos de pedagogia, direito e quando estava a frequentar economia... abandonou por falta de tempo e logo aquele que era "um sonho de 20 anos".
Nos últimos anos foi um oposicionista das políticas económicas dos governos, o que lhe valeu ser visto como uma espécie de arauto da desgraça. Em vida não teve pejo em responder a quem o via dessa forma: "Os arautos da desgraça são os irresponsáveis que andam a dizer isso. Andam de olhos fechados, ou para se servirem, ou para fazerem carreira política. Se não mudarmos a economia, vamos estar numa pobreza como não conhecemos desde princípio do século passado."
Filho do historiador António Barbosa Carreira e de Carmen Medina Carreira, nasceu em Bissau, capital da Guiné a 14 de janeiro de 1931.
Curiosa a revelação feita em 2009 de que o pai lhe tinha chamado "burro" por ter aceite o cargo de ministro das Finanças "de um país falido". Sem complexos, assim se definia, em jovem praticava futebol no Inverno, remava na Primavera e fazia atletismo no Verão.
E garantia que não desapontava. "Só posso ter desapontado trafulhas. Pessoas sérias, não. Eu tenho uma qualidade: sou uma boa pessoa. Sou uma pessoa que não trafulha, que não intriga, que não se vinga, que não persegue, que não odeia. São as minhas grandes qualidades."


Medina Carreira. O problema de fundo não é o euro mas a desindustrialização

É uma condição necessária mas não suficiente. Existe porque não há dinheiro para que o Estado provoque défices mais altos e gaste mais. E também porque sem ordem nas contas públicas, com dívidas brutais, com impostos selvagens e com juros demolidores, não se investirá em Portugal. Sem se investir na produção de bens exportáveis ou que evitem as importações, o que vamos dizendo destina-se apenas a ludibriar-nos uns aos outros.
O congelamento das reformas antecipadas resolve o problema de fundo da Segurança Social? Ou é preciso ir-se muito mais longe?
Creio que não passa de um expediente de tesouraria. A sustentabilidade tem muito mais que se diga e exige um trabalho sério, ainda não iniciado. Quer isto dizer que é indispensável uma reforma global do social e não apenas cortes de circunstância aqui e ali. Preocupante é que nenhum responsável político, que se saiba, tenha feito qualquer alusão a esta tarefa, essencial e urgente.
E a sucessiva utilização dos fundos de pensões para pagar despesa corrente e amortizar dívida pública, ao invés de a transferirem para a Caixa Geral de Aposentações ou a Segurança Social?
São apenas expedientes. É precisa uma reforma. Quanto a isso, e como já disse, deploro a passividade do governo. O problema das políticas sociais será, talvez antes de 2020, explosivo. Na verdade, só a preservação do Estado social – adaptado às novas realidades económicas, financeiras e demográficas – poderá evitar uma situação ainda mais dramática em Portugal.
Critica muito os políticos por só olharem para as folhas em vez de para a floresta. Quais são os verdadeiros problemas de Portugal?
Tenho para mim como certo que a origem da presente crise do Ocidente emerge da sua desindustrialização e da dependência energética, com custos crescentes. Foi isso que afundou as economias e foi esse afundamento que motivou os endividamentos já referidos, destinados a evitar uma quebra acentuada do padrão de vida ocidental. Entre nós, sentem-se também os efeitos da incompetência e da irresponsabilidade governativa vigente nos últimos anos. A fragilidade económica ocidental gerou os endividamentos e foram estes que originaram o subprime americano, tanto quanto a chamada crise das dívidas soberanas na Europa. A crise da zona euro surge na sequência desses factos. Sem se enfrentar esta realidade mais ampla, os esforços em curso na Europa do euro, mesmo que bem sucedidos, não evitarão a progressiva decadência do Ocidente. Neste emaranhado de circunstâncias, de que ainda não se fala em Portugal, as árvores são a austeridade, a falta de crescimento e o desemprego. Estão na orla da floresta e por isso são visíveis por todos. Mas a reviravolta do mundo, que é tudo o resto que a liberalização económica provocou, ultrapassa a Europa e o euro, e constitui a verdadeira floresta em que avançamos, desorientados.
Na sua opinião, este governo fez ou mediatizou as reformas?
Das muito urgentes e decisivas, creio que pouco. Talvez distracção minha! É altamente preocupante a lentidão na execução dessas reformas. E sem explicações públicas para este arrastamento de pés.
Concorda com o novo Código do Trabalho ou ainda estamos longe dos nossos mais directos concorrentes, que neste momento são os ex-países de Leste? 
Há muitos anos que não trabalho nessa área. Tenho por isso dificuldade em me pronunciar acerca da adequação das soluções a introduzir no Código do Trabalho. Nunca escutei uma palavra acerca do ponto de referência que foi escolhido, por isso tenho a convicção de que o método tenderá a falhar. Portugal precisa de atrair investimentos, para o que
se impõe escolher medidas competitivas como as adoptadas, nestas e noutras áreas, pelos países europeus que nos têm roubado os investimentos. De facto, se é essencial sermos competitivos em relação ao que produzimos, é indispensável que o sejamos também no que toca ao que se investe. Trata-se de uma consequência inexorável do funcionamento dos mercados abertos. Se o governo não está a proceder assim, comparativamente com o que se passa na Europa Central e do Leste, de pouco servirão as reformas que estão a ser estudadas. Repito: falamos de reformas sem as quais não teremos um crescimento razoável e continuado, susceptível de combater o desemprego.
Como vê a actual crise da Europa?
Já mencionei há pouco as causas situadas fora da Europa. Pela sua importância decisiva, volto a sublinhar que são, primeiro, a instalação das indústrias transformadoras nos países de mão-de--obra muito barata, em geral no Oriente; segundo, os custos crescentes do petróleo. Por isso ficaram connosco: o desemprego industrial, que não diminui; os empregos mal pagos nos serviços pouco qualificados; a obrigatoriedade de importar o que antes produzíamos e agora já não produzimos, provocando de- sequilíbrios, que não existiam, nas nossas balanças comerciais; a cada vez mais pesada factura do petróleo. São estas as causas essenciais do afundamento das nossas economias. Iludimos esta realidade com os “endividamentos” destinados a manter um nível de bem-estar que já não estava, nem está, ao alcance do que produzimos. As sociedades desta parte do mundo estão a ser enganadas,
todos os dias, por um número excessivo de irresponsáveis.
A actual crise é mais política ou mais económica?
É económica na sua génese e política pela incapacidade de correcto diagnóstico dos estados. E sem um diagnóstico acertado não haverá políticas adequadas.
E que papel tem a Alemanha neste contexto? Como vê a actuação da senhora Merkel? 
A Alemanha também sofre as consequências. Atenuadamente, porque as suas indústrias de exportação ainda não fugiram e porque se aproveita muito dos países vizinhos aos quais compra o que ali se produz muito mais barato. A Alemanha também beneficia muito da credibilidade da sua economia e da sua organização, pelo que se financia a taxas de juros impensáveis para os outros países. Além de tudo isso cuida com muito rigor da sua competitividade, com políticas salariais muito contidas. Porém, que ninguém se engane: a economia da Alemanha também rasteja, a um ritmo médio anual, entre 2000 e 2010, de 0,9%. Nós, portugueses, registámos 0,7%!
Ainda há diferenças entre uma governação de esquerda e de direita no actual contexto da zona euro?
Cada vez menos. Entenda-se que aos estados da actual zona euro foram sendo subtraídos poderes de intervenção económica de relevância decisiva, relativos às tarifas aduaneiras, à emissão de moeda e à definição da sua quantidade em circulação, à fixação das taxas de juros, às taxas de câmbios, à fixação autónoma dos défices orçamentais e ao controlo da circulação de capitais. Impõe-se ainda recordar os efeitos da internacionalização económica, que permite que as empresas se movam no âmbito global, ficando a soberania dos estados amarrada dentro dos seus territórios. Há também o afundamento das economias desde há 30 anos. A considerar, igualmente, o envelhecimento demográfico, só por si inviabilizador das políticas sociais tais como foram instituídas. Tudo isto condiciona decisivamente a prática de políticas económicas mais à esquerda ou menos à direita, como aliás se verifica em toda a Europa. A social-democracia está confinada ao pretenso monopólio da sensibilidade social, que não passa de um discurso vazio. O sindicalismo tornou-se ineficaz porque não vale a pena reivindicar, face a falidos, como estão hoje o patronato e também o Estado. Vivemos assim num mundo novo em que os modelos de há 30 anos já não cabem e só são defendidos por alguns distraídos que se recusam a abrir os olhos e a descortinar a realidade que os cerca.
Quando era ministro as pessoas não reivindicavam como hoje quando os salários desvalorizavam? É certo que não havia cortes como agora mas a inflação absorvia os aumentos provocando cortes muito maiores que os actuais...
Não havia uma noção rigorosa do fenómeno. A grande massa não tinha a noção da erosão provocada pela inflação. Ou seja, os salários cresciam por hipótese 15% com uma inflação de 25%, o aumento nominal criava a ilusão de que estavam a ganhar mais. Em seis meses, um ano, a crise passava. Hoje não há nada disso. A capacidade de adaptação às novas circunstâncias é muito mais difícil hoje. Os mercados são mundiais e as nossas leis são locais.
Há mais de duas décadas que se fala do declínio dos Estados Unidos e da emergência da China. Afinal quem está a ir ao fundo é a Europa. Porquê?
Nos últimos dez anos – de 2001 em diante – todas as economias desenvolvidas do Ocidente registaram desacelerações muito acentuadas, na zona euro como nos Estados Unidos. Compreende-se. Foi neste período que as deslocalizações e os investimentos industriais directos procuraram o Oriente, com saliência para a China. Foi nesse tempo também que os preços do petróleo mais subiram e mais altos se mantiveram. Estes factos explicam muito, a meu ver, as crises dos endividamentos, que nos trouxeram até à dificílima situação actual. Se se mantiverem estas tendências, a decadência do euro e da Europa será rápida e irreversível.
Não receia que o fim do Estado social, tal como ele é hoje percepcionado pelos europeus, e o desemprego abram caminho à extrema-direita na Europa?
Se nada for feito, ajustando o regime do Estado social às novas realidades financeiras, económicas e demográficas, são previsíveis rupturas sociais com consequências inimagináveis. É por pensar assim que há muito tempo insisto na necessidade, absoluta e urgente, da reforma do Estado social. De outro modo, poderemos ter o caos e a desordem no nosso país.
A democracia está em perigo?
Se a crise que atravessamos persistir e o governo se limitar à política dos cortes, em vez de à reforma do Estado social, tudo poderá acontecer.
Como vê a França depois da vitória de François Hollande?
Vive-se um tempo de fantasia, agora animado pelo novo presidente francês. Só por cegueira ou por estupidez se pode pensar que há quem não queira o crescimento e o emprego. Para tanto é porém essencial criar fontes de financiamento e definir o destino dos meios conseguidos, em termos de assegurar o êxito da sua aplicação. Quanto ao primeiro problema levanta-se a dificuldade da sua obtenção: a palavra alemã, que é fundamental, não vai ser favorável a esquemas de facilidade – como o dos eurobonds – porque o eleitorado não estará disposto a suportar os riscos e encargos, conhecida que é a irresponsabilidade na gestão dos dinheiros públicos, em alguns países. Quanto ao segundo problema, fala-se em aplicar o dinheiro em infra-estruturas, em energias verdes, em grandes projectos, etc... Nós, portugueses, sabemos muito bem o que é tudo isto, através da pré-bancarrota e da desgraçada situação para que nos arrastaram. Vítimas do excesso do endividamento e da má aplicação dos dinheiros, iremos repetir a solução que nos desgraçou?
A receita dos impostos indirectos agravou a tendência de queda em Abril e a Unidade Técnica de Apoio Orçamental já alertou para um buraco potencial de 800 milhões de euros na receita no final do ano (0,5 pontos do PIB). À medida que for percebendo que a meta do défice orçamental está em risco o governo deve lançar mais medidas ou procurar tolerância por parte da troika?
O governo tem afirmado que só se falharmos por razões que nos sejam estranhas se promoverá uma alteração das condições da troika. Aliás, como também o disse o ministro das Finanças alemão. Creio que o assunto está esclarecido.
O Conselho para as Finanças Públicas alertou para a continuação de erros clássicos no processo orçamental: dependência de medidas transitórias e de cortes cegos na despesa, cortes excessivos no investimento público e previsões futuras demasiado optimistas. O que lhe parece a qualidade do ajustamento orçamental português? Poderia ser outra dada a urgência da situação?
Desse Conselho espero apenas, e é muito, a apresentação de números rigorosos e completos.
Como vê as próximas eleições na Grécia? 
A situação na Grécia é muito complexa. Não possuímos elementos que nos permitam discernir com muita segurança a respeito da evolução no país. Pessoalmente temo que esteja a caminhar para um regime autoritário. Se houver um colapso financeiro, não é de excluir que surjam problemas de rua. Quando é assim, os países temem em entregar-se a alguém que de volta tranquilidade.
E vê o país a sair do euro?
Alguma Europa, a que tem dinheiro, começa a cansar-se do problema grego. Já houve dois acordos de assistência e não se vê as necessidades gregas chegarem ao fim. Não se percebe o que está feito ou não está. Sabe-se que precisa de dinheiro todos os dias. Se a Grécia tem o direito de democraticamente escolher o seu próprio rumo, é preciso perceber também que os países ricos também podem democraticamente fazer as suas opções.
E a situação em Espanha?
A Europa rica vai fazer tudo para evitar problemas muito grandes na Espanha. Primeiro, porque não se encontra em estado de desagregação política e social como a Grécia. Segundo, porque a Espanha tem um peso na Europa em relação ao qual não deve haver descuidos. Qualquer dos países que se encontram em grave crise precisa de financiamentos, que naturalmente passam pelo sistema bancário. E esses financiamentos que muitos querem que se faça pelos eurobonds dificilmente avançarão. Por um lado, os países que se financiam a baixos juros, como a Alemanha. Pela via dos eurobonds, irão sofrer um agravamento das taxas de juro. Por outro lado porque se os países necessitados vierem a falhar os seus compromissos serão os países ricos a suportar as dívidas destes. Tudo isto leva a crer que os eleitorados europeus vejam com maus olhos essa figura dos eurobonds. Creio que só serão viáveis quando os países necessitados se submeterem a uma disciplina financeira que não deixe receio aos países do centro da Europa que vão ter de pagar ainda mais pelo não cumprimento das regras por alguns estados-membros.
Ou seja, primeiro a disciplina e depois os eurobonds. É essa a posição implícita da Alemanha...
Sim. Se põem dinheiro a circular sem se instalar uma rigorosa disciplina financeira na Europa, num prazo muito curto corre-se o risco de voltarmos ao ponto de partida.

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