domingo, 1 de outubro de 2017

Reflexão - António Barreto

(Mais uma) excelente reflexão de António Barreto

É tão estranho! Depois de quarenta anos de democracia e de cinquenta e oito eleições, os portugueses continuam a ser tratados como analfabetos, mentalmente débeis, fúteis e facilmente manipuláveis. Na véspera de uma eleição não se pode escrever, ler, discutir ou debater política directa ou indirectamente relacionada com a matéria em causa. Quer isto dizer, tudo! No dia da eleição, domingo, ainda menos se pode debater até às 20.00 horas.
Neste dia, há outra característica curiosa: não se podem ou não se devem realizar desafios de futebol. Todos? Todas as competições? Só as principais? E as amadoras? E o hóquei em patins? E bilhar às três tabelas? E concertos de música? E cinema? Neste ano, por causa de um encontro entre o Sporting e o Porto, decidiu-se, a bem do consenso, adiar o desafio para as 19.00 ou 20.00, supondo que muita gente não iria votar porque estava ocupada a ver o futebol.
A ideia que os políticos e as autoridades, na verdade uma boa parte das elites, fazem dos cidadãos alimenta a sua concepção de democracia: os portugueses, uns pobres diabos, vulneráveis, incultos e indefesos perante as forças do mal, têm de ser protegidos pelos esclarecidos a fim de cumprir os seus deveres cívicos.
A inibição de partidos regionais vai no mesmo sentido. A proibição de invocar o nome de deus ou de utilizar designações que possam aludir à religião é do mesmo calibre. A interdição de associar uma instituição e de incluir a palavra Portugal ou de qualquer símbolo nacional nas denominações partidárias é semelhante. A proibição de candidaturas independentes nas legislativas é convergente, tal como os obstáculos burocráticos aos independentes nos casos em que são permitidos. As dificuldades em organizar referendos reforçam esta noção iluminada da política e da democracia. A exclusão da hipótese do referendo constitucional é do mesmo cariz. As regras que regulam a comunicação, especialmente televisiva, e que se propõem preservar o pluralismo, quando, no essencial, servem para proteger os partidos estabelecidos e controlar os limites da expressão, são um contributo valioso para o colete-de-forças democrático. Mas sobretudo, acima de tudo, a recusa dos votos uninominais e pessoais é um dos mais significativos indicadores da concepção elitista, vanguardista, jacobina e partidocrata da nossa democracia. Depois destas eleições, a vida continua. A Terra anda à volta do Sol. O maior escândalo financeiro da história de Portugal, o caso BES/GES e companhia, continua à espera. O maior assalto político ao poder das últimas décadas, o caso Sócrates, espera por avanço. O mais grave acidente de segurança nacional do último século, o caso de Tancos, aguarda esclarecimento. O mais dramático acidente nacional (e, no grupo de incêndios florestais, um dos maiores do mundo), o caso de Pedrógão e vizinhanças, permanece na obscuridade da ocultação deliberada. Estes são os casos que nos esperam. A que estas eleições não respondem nem tinham que responder. Mas cujos resultados vão talvez ajudar a resolver ou, pelo contrário, contribuir para enterrar.
Até porque estas eleições são mesmo interessantes. Têm, evidentemente, como sempre, leituras locais, regionais e nacionais. Vão permitir aferir os partidos, um a um, assim como os seus equilíbrios internos, em particular do PSD, à beira de uma crise muito séria. Vão ajudar a rever as posições de força dos dois partidos de extrema-esquerda que apoiam os socialistas e o governo. Darão um contributo valioso para medir a relação entre políticos e cidadãos. Vão ser mais uma medida da abstenção e do interesse dos portugueses pela "coisa pública", pela administração, pelo bem comum.

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