segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Reflexão - António Barreto


A inocência perdida
A nomeação, pelo Presidente da República e sob proposta do governo, do procurador-geral da República é dos actos mais sérios do elenco de competências dos titulares de órgãos de soberania. A seriedade deveria ser a regra, o que não exclui debate. Transformar aquela designação, a quase um ano de distância dos prazos devidos, numa cena de intriga não é próprio de uma República decente. Governantes, partidos, jornalistas e gente avulsa já se encarregaram de estragar a próxima nomeação, de que alguém sairá mal.
Como é evidente, há, em teoria, várias soluções para o problema. O mandato pode ser sem renovação. Ou só com uma, ou duas ou três. Ou sem limite. Há em Portugal soluções para todos os gostos: o Presidente da República, os presidentes de câmara e de junta de freguesia, os juízes do Tribunal Constitucional, o procurador-geral da República, o Provedor de Justiça, o presidente do Tribunal de Contas, o governador do Banco de Portugal e outros. Quando o legislador quis estabelecer limites, estes ficaram explícitos. Se não estão, é porque não há. Gostemos ou não. Todas as soluções são legítimas e legais desde que expressas na lei. Cada um pode gostar mais de uma ou de outra, é seu direito. O que não se pode é divagar sobre as intenções do legislador conforme as conveniências pessoais. Mas parece que é por causa disso, das divagações, que há tantos juristas e gente que sabe tanto de direito!
Por mais legítima que seja, por mais racional e cuidada que venha a ser, qualquer decisão ficará sempre marcada pela intriga. O próximo PGR nascerá estigmatizado por uma espécie de reserva de desconfiança. A escolha ficará para sempre sob suspeita. Para salvar ou condenar Sócrates? Para liquidar ou ressuscitar Salgado e o Grupo Espírito Santo? Para ocultar ou trazer à luz do dia administradores do BES e do GES que se têm mantido na sombra? Para ajudar ou prejudicar os socialistas? Para sentenciar ou poupar Granadeiro, Bava, Vara, Penedos, Vicente, Oliveira e Costa, Lalanda, Macedo e outros? Para afastar do horizonte ou renovar a questão da lista das 200 personalidades dos Panamá Papers de que tanto se fala? Para arredar de uma vez por todas ou trazer à superfície o persistente rumor sobre as gravações alegadamente nunca destruídas das escutas telefónicas de Sócrates e de muitos políticos e empresários?
As razões para desconfiança são muitas. Mas uma coisa é certa: a próxima nomeação não será inocente. A escolha será feita por causa dos boatos. Qualquer que seja a decisão, haverá desautorização, cedência, recuo ou derrota de uma ou várias figuras centrais do Estado: ministra, primeiro-ministro, procuradora e Presidente da República. Não é muito saudável.
A renovação do mandato da actual procuradora (que parece ter feito excelente trabalho) ou a sua substituição têm de resultar da vontade explícita do governo e do Presidente da República. Creio que nunca saberemos o que pensam a ministra, o primeiro-ministro, a procuradora e o Presidente da República. Só sabemos que há gente interessada em liquidar o fim do mandato da actual procuradora, em tornar ilegítima a nomeação futura, em fragilizar o Presidente da República e em perturbar o curso de alguns dos mais difíceis processos da história do país dos últimos cem anos!
Aliás, não passou despercebida a coincidência, no tempo, entre a intenção de substituir a procuradora, a recordação dos "casos das adopções da IURD" e a apresentação, ao Presidente da República, de um primeiro rascunho para um Pacto de Justiça proposto pelos corpos e sindicatos.
É cada vez mais possível que nunca haja julgamento das figuras importantes da política, do Estado, dos partidos, da economia e da banca. Que nunca haja legislação eficaz sobre corrupção. Que a crise da Justiça se desenvolva. Que o Pacto de Justiça, já hoje mal nascido, seja enterrado. Este debate sobre a nomeação da procuradora é desnecessário, extemporâneo e muito prejudicial, além de perversamente orientado. É um atentado à Justiça.

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