segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Reflexão - Henrique Neto


O Orgulho de Ser Português

As paixões são sempre excessivas e a minha por Portugal é grande. Por isso, um dos meus ódios de estimação vai para a corrupção, por ter verificado que sempre esteve presente ao longo da nossa história.


Tenho muito orgulho em ser português e não consigo ver-me a viver em qualquer outro lugar. Tenho uma verdadeira paixão pela nossa paisagem, considero a nossa comida a melhor do mundo, bebo com prazer redobrado os nossos vinhos, delicio-me na leitura dos nossos poetas e escritores, tenho uma profunda admiração por muitos dos nossos cientistas e pensadores e regozijo-me até às lágrimas com as vitórias de cada português no mundo. Se me perguntassem porquê não saberia explicar, nem saberia racionalizar cada um desses sentimentos, sendo todavia certo que existe também muito desapontamento com Portugal e, não poucas vezes, com os portugueses, resultante da nossa realidade que, com demasiada frequência, não corresponde àquilo que ambiciono para o meu país. Daí que seja também natural que seja muito critico, mais com os nossos, porque me dói mais, do que com aqueles que me são indiferentes.
Os desapontamentos com Portugal levam-me com frequência a evocar que sendo Portugal o nosso único país, vos peço humildemente que o não estraguem. E sendo pouco ouvido, desenvolvi com o tempo um verdadeiro horror a construtores civis, promotores imobiliários, autarcas ignorantes, políticos desonestos e governantes de fazer de conta, ainda que conheça o perigo das generalizações. Mas que fazer? As paixões são sempre excessivas e a minha por Portugal é grande. Por isso, um dos meus ódios de estimação vai para a corrupção, por ter verificado que sempre esteve presente ao longo da nossa história, a ponto de acreditar que foi, em parceria com a Inquisição e a expulsão dos judeus, a causa principal da decadência portuguesa a seguir à gesta dos descobrimentos, cujos efeitos ainda se fazem sentir.
Foi o tempo em que D. João III escrevia em carta ao Vice-Rei da Índia D. João de Castro: “ Não deixem passar a pimenta e drogas que sou informado que os mesmos que as hão-de guardar são os que as passam”. De mesma forma, o maior dos portugueses, o Padre António Vieira, interrogado por D. João IV, sobre se no Brasil melhor seriam dois capitães-mores ou um governador, assim lhe respondeu por carta de 4 de Abril de 1654: “Eu Senhor, razões políticas nunca as soube, e hoje as sei muito menos, mas por obedecer direi toscamente o que me parece. Digo que menos mal será um ladrão que dois; e que mais dificultosos serão de achar dois homens de bem que um”. O mesmo Padre António Vieira, depois de uma vida cheia de ambições e de amor por Portugal, morreu no Brasil triste e desiludido com a má governação do reino, quando dizia: “... O nosso descuido a nada atende. Parece que estamos fora deste mundo. Afirmo a V. S.ª me desejo em algum lugar, se o há tão remoto, onde não se ouça ou conheça o nome de Portugal. Tremo dos correios que de lá vêm, porque todos trazem motivos de dor e tristeza, sem depois deste governo lermos uma nova de gosto ou esperança dela.”
É sina nacional que este orgulho de ser português, seja sistematicamente confrontado com factores que nos envergonham e atrasam o nosso desenvolvimento. A corrupção, a cobiça, a ignorância e a perversão do interesse nacional, são factores diários de tristeza e de frustração para aqueles que colocam Portugal acima dos interesses caseiros. Tenho como certo que algo se deve à falta de uma cultura de rigor da sociedade portuguesa, cujo resultado é a ausência de estudo e de dúvida naquilo que fazemos, fruto de uma escola sem qualidade e de séculos de repressão do pensamento livre. O que se transformou numa das mais graves fraquezas nacionais, infelizmente incentivada pelos poderes de todas as épocas, já que permite a cultura da meia verdade, o silêncio cúmplice, a informação propositadamente parcelar, a fuga à quantificação e à avaliação, em suma a recusa do pensamento sistémico e da análise critica. Sendo que os meios de comunicação do Portugal democrático e livre, na sua maioria, se foram tornando também cúmplices dessa perversão, em que o cidadão português, mesmo o mais razoavelmente informado, vive diariamente confrontado com uma realidade virtual, autêntico jogo de sombras, que divide, confunde e dificulta o progresso, a unidade na acção e inviabiliza a superação do nosso atraso histórico. Acresce que neste domínio, hoje como ao longo da nossa história, os portugueses de maior qualidade, os pensadores mais qualificados e os cidadãos mais devotados ao interesse nacional, são sistematicamente rejeitados pelo poder do seu tempo e mansamente alienados sob as mais diversas formas, frequentemente estrangeiros na sua própria terra.
Constato, vezes sem conta, que em Portugal existe uma bem regulada inversão de valores, em que o falso, o palavroso, o corrupto e o ignorante, mas com ligações ao poder, é tratado com a deferência do cidadão privilegiado, ao contrário de muitos outros que sofrem por Portugal, mesmo que cientistas, homens de cultura e emigrantes qualificados, que são olhados de soslaio e com uma inevitável desconfiança. Porventura por serem cidadãos pensantes e com algum sentido critico, logo perigosos para os poderes em exercício.
Esta ausência de rigor científico e de sentido critico na vida colectiva dos portugueses comporta custos elevados no nosso processo de desenvolvimento, tema que nos deve preocupar profundamente na actualidade. Porque, têm sido pedidos sacrifícios aos portugueses para superar a longa crise económica, mas invariavelmente não são quantificados os custos nem os resultados pretendidos, como não é medida a distribuição desses sacrifícios pelas diferentes classes sociais. Por outro lado, as elites políticas e sociais têm demonstrado uma grande preocupação com os problemas do desenvolvimento sustentável, mas a generalidade dos investimentos públicos e privados continua a ser feita, essencialmente, à custa da degradação do território, ao ponto de ter sido criada a figura do interesse nacional para deixar mãos livres à especulação fundiária e imobiliária e a mais ampla arbitrariedade sobre a definição do que é, em cada caso, o interesse nacional. Por sua vez, tem sido promulgada a mais variada legislação destinada a moralizar o cumprimento das obrigações dos cidadãos para com o Estado, o que naturalmente se apoia, mas o Estado é cada vez mais amoral no cumprimento das suas promessas e obrigações para com os cidadãos. Acresce ainda que o actual Governo deixou de se preocupar coma as reformas prometidas ao longo de muitos anos, deixadas por realizar em tempo útil. Por outro lado, não mostrando o Governo ter soluções suficientes para resolver os problemas estruturais da economia, além de alguns anúncios virtuais, o que restará da confiança dos cidadãos no momento do julgamento final sobre os resultados? Uma nova desilusão?
Finalmente, é uma preocupação adicional para muitos daqueles que se orgulham de serem portugueses, a evidência de que nunca tanta riqueza sem causa conhecida foi tão visível em Portugal e nunca os sinais de corrupção foram tão amplamente divulgados, sem que a AR, o Governo e o PS mostrem a preocupação que se pensaria justificável, ou seja visível a intenção de fazer justiça com qualidade e celeridade. E, porventura mais importante, sem que seja estabelecido o quadro político que permita a prevenção necessária, para que esses fenómenos erosivos do regime democrático não possam continuar impunes. Ao invés, a afirmação mais frequentemente utilizada pelo poder político é a de que os portugueses não são corruptos, o que sendo semanticamente verdadeiro, não pode deixar de constituir um acto de fraqueza que dá uma confiança acrescida aos corruptos, que os há e não são poucos.
Durante o período em que exerci actividade política activa, apresentei duas moções a outros tantos congressos do Partido Socialista, moções a que dei o nome de Portugal: “Portugal Primeiro” e “Pensar Portugal”. Nos textos apresentados, acredito que seja visível uma certa angústia pelo futuro do nosso país, mas também fiz muitas propostas para superar as dificuldades, que então eram negadas, mas que hoje são aceites como evidentes. Dizem-me que essas propostas chegaram antes de tempo e muitos animam-me com a possibilidade de serem aplicadas no futuro. Talvez que sim, mas talvez seja essa a tragédia de ser português: o conformismo e o fatalismo de aceitarmos andar atrás dos outros e de fazer sempre tarde o que poderia e deveria ser feito cedo.
Aproveito para desejar a todos os leitores e familiares, bem como aos fazedores deste jornal, um Novo Ano de Paz e Saúde, bem como desejo a todos os portugueses uma “Democracia de Qualidade”.
Gestor e professor do ISCTE-IUL
Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”

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