domingo, 21 de fevereiro de 2021

Reflexão - Henrique Neto

E o melhor de tudo são as crianças

A semana passada António Barreto publicou no ‘Público’ um lúcido artigo sobre os perigos de o Portugal político ficar dividido em duas metades irreconciliáveis, uma de esquerda e outra de direita, ambas com as suas próprias soluções, essencialmente movidas pela ideologia e pelos interesses partidários, mais do que pela racionalidade. 

Na raiz deste problema, penso, existe a má qualidade da formação e da informação que temos, que convive com a tendenciosa e irracional actividade partidária, que se tornou um enorme jogo de enganos, a que a corrupção e os interesses económicos não são alheios. Uma comunicação social em dificuldade económica, com muitos programas de televisão medíocres, onde tudo pode ser dito de forma acrítica, sem contraditório minimamente inteligente e racional. Existe na sociedade portuguesa a ausência daquilo a que tenho chamado, com frequência, a procura da verdade, verdade racionalmente demonstrável, a que sobrevive ao tempo.

Ultimamente tenho participado pela Net em várias conferências e debates onde os participantes têm uma feroz necessidade de falar muito e sobre todos os problemas que afectam a humanidade, também em Portugal, onde, como sabemos, os problemas são muitos. António Costa Silva fez escola entre nós com a seu imenso catálogo de ideias e de propostas, onde se perde a simples noção da escolha, de definição de uma estratégia, de encontrar algum sentido de direcção para o País.

Dizem-me que isso se deve em grande parte às redes sociais. Talvez, mas pessoalmente fico mais impressionado com muitos programas de televisão, alguns que já levam muitos anos, como o agora Circulatura do Quadrado, e outro, o Eixo do Mal, que acaba de fazer dezasseis anos de vida. São programas, entre outros, que independentemente da qualidade das pessoas que neles participam, que não discuto, não representam a diversidade do pensamento nacional e falam de tudo numa cacofonia insuportável. A Circulatura do Quadrado, que era suposto ser um programa independente e representar a diversidade dos diferentes partidos políticos, deixou de se dar por isso, para, com pequenas nuances, agradar ao poder político em excercício. Porque tanto Jorge Coelho antes, como Catarina Mendes agora, têm dominado o programa. A semana passada, Pacheco Pereira arriscou, quase no final, falar de corrupção, nomeadamente no PS, mas localizando essa acusação em José Sócrates, evitando falar da corrupção de hoje, quando tanto haveria a dizer. António Lobo Xavier parece perdido entre o seu CDS, o Presidente da República e a vontade de coexistir com Catarina Mendes, sendo esta o papagaio falante ao serviço do Governo.

Quanto ao Eixo do Mal, ainda não percebi se é um programa de entretinimento ou de debate. Em qualquer caso, não é para levar a sério. Por entre as muitas risadas que sugerem um programa para rir e grandes tiradas filosóficas a mostrar cultura, cultiva uma certa auto-suficiência nas opiniões, entre todos semelhantes e que, de tanto repetidas, enfadam. No campo das ideias e do pensamento organizado e livre ainda não vi nada, mas aceito que a culpa possa ser minha.

O futebol, com a sua imensa capacidade de activar paixões, presente em todos os canais e a todas as horas, agora dividindo o tempo com a pandemia, são factores que acentuam a irracionalidade da nossa vida em sociedade. Outra razão para a ausência de método, de disciplina e de ciência no debate nacional, deve-se ao estranho silêncio da Universidade Portuguesa, mesmo quando no caso da pandemia, da moda do hidrogénio e dos investimentos públicos, se trata de temas que enchem os jornais e as televisões e são ali tratados, principalmente,  por curiosos falantes.

O resultado de toda esta diarreia discursiva é a inexistência de ideias organizadas quanto ao futuro do País. O que existe é confusão, uma infinidade de opiniões sobre tudo o que mexe, mas que, quando se chega, finalmente, a procurar soluções racionalmente viáveis, zero. Esta é uma forma de não debate, de incapacidade de fazer sínteses e da propensão para falar de mais e pensar de menos, o que parece dominar a nossa vida colectiva. O que não admira, dada a longevidade e a permanência dos mesmos na comunicação social e o amiguismo que reina em grande parte da sociedade portuguesa. Há, naturalmente, excepções, como algum jornalismo de investigação que, a propósito, está a ser atacado por dentro e por fora, como temos excelentes cronistas que, infelizmente, são pouco lidos. António Barreto e João Miguel Tavares são os meus favoritos, como Mira Amaral nas questões económicas, porque são dos poucos que denodadamente procuram a verdade no meio da cacofonia dominante. 

Existem ainda pequenos grupos temáticos que produzem manifestos, que defendem a reforma das leis eleitorais, a mudança da política energética e a ferrovia com ligação à Europa. Outros lutam por uma economia de concorrência, defendem a indústria e o investimento estrategicamente relevante, nomeadamente estrangeiro. Outros ainda, como eu próprio, defendem a ideia da necessidade de um programa de creches e de escolas do pré-primário de elevada qualidade e com transporte, que garanta a igualdade de formação das crianças à entrada do ensino oficial aos sete anos que é, pensamos, a chave da mudança, a oportunidade para reduzir a desigualdade na sociedade portuguesa numa geração. 

Muita gente pensa que o combate à desigualdade se consegue através da economia, mas há pessoas, como eu, que pensam que o combate à desigualdade se faz através da educação, se compreendida como um conjunto de conhecimentos, de comportamentos e de competências e não apenas através da transferência de conhecimentos. No caso português, o combate à desigualdade tem sido tentado através da subsidiação compensatória feita pelo Estado, o que tem criado a dependência de largos sectores da sociedade portuguesa e tem contribuído muito pouco para tornar os cidadãos auto-suficientes, além de económica e politicamente livres e independentes. 

Recentemente, publiquei no jornal ECO um texto de cerca de dez páginas que pretendia fazer a demonstração da necessidade de haver em Portugal um debate sobre o essencial, em vez de nos consumismos no acessório, com vista à superação da crise. Era também uma forma de mostrar a vacuidade das 140 páginas do engenheiro António Costa Silva. Escrevi-lhe a propor um debate público para comparar as perspectivas dos dois textos e tentar alguma conclusão que pudesse servir o País. Como seria de esperar, não chegou resposta, porque a ideia dominante não é resolver os problemas que enfrentamos, ou desenhar uma estratégia com futuro destinada a vencer a crise, mas apenas uns dias de glória na comunicação social. 

Acresce que, do ponto de vista da criação de pensamento renovador, ou do desenvolvimento económico, a geringonça, como causa ou efeito, bloqueou o País. Tratou-se de um casamento de conveniência, em que cada noivo tem os seus próprios objectivos, o que contribui ainda mais para aprofundar a irracionalidade e a ausência de estratégia quanto ao nosso futuro. 

Por vezes, na história dos povos, porventura por mero acidente, surge uma oportunidade, uma luz ao fundo do túnel, uma personalidade que marca a diferença. No nosso caso, um Presidente da República providencial e visionário, que fosse a consciência positiva do futuro da Nação, poderia fazer a diferença, por estar no centro de um sistema político fechado. Infelizmente, não tem sido isso que acontece e os últimos anos são de total fechamento nas ideias e nas práticas dominantes. Ou seja, é mais do mesmo. ■

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