A democracia e os seus inimigos (José Manuel Marques)
Milhões de indivíduos secularizados, mas evangelizados pelas novas causas justas, acabam a adoptar a mentalidade do cruzado, mergulhando naquilo a que chamei a luxúria da virtude: a adesão a uma concepção do mundo tão nobre e cheia de si que se torna profundamente intolerante para com o pensamento divergente. Não há espaço para a troca livre de argumentos e toda a palavra heterodoxa invade um território tabu, sacralizado e impermeável ao debate de ideias.
Infelizmente, o excesso de pureza sempre foi um íman irresistível para a falta de decoro. Toda a Justine tem o seu Sade
João Miguel Tavares , Público, 31de Dezembro de 2020
O excerto de João Miguel Tavares que saiu no Público, faz parte de três textos a que o seu autor chamou Ensaio sobre o Tribalismo.
Tal como fica patente no passo que escolhemos , trata-se de uma análise crítica ao que o autor designa o discurso pretensamente secularizado da intolerância mas que enferma dos mesmos pecados que o discurso "beato" ou a confissão, que em tempos idos, a Inquisição arrancava aos seus infelizes suspeitos, logo condenados, tivessem ou não consciência das suas heresias ou pecados. Eu sou culpado, não importa de quê, nem porquê.
Sendo verdade que toda a ação ou acontecimento provoca reação, mentalidades que sustentaram comportamentos, hoje , vistos, e bem, como desviantes ou mesmo altamente desviantes,, durante milénios ou séculos, como a subalternização das mulheres, os maus tratos e os abuso sobre crianças, a escravidão de outros seres humanos, a crueldade ou a negligência com os animais, levaram a que, nos nossos tempos , essas matérias, não só sejam abertamente analisadas comentadas como, claro, alvo de críticas, até porque o documento que consagra a dignidade humana não tem assim tanto tempo. Foi adotada pela ONU em 1948., ou seja aproximadamente três anos após o término da mais mortífera guerra de que há memória e sem dúvida onde ocorrera, em quantidade e em ordem de importância, os maiores atentados contra a dignidade humana.
Não é então novidade que hoje, pessoas bem pensantes, seguramente cheias de boas intenções se dediquem , e ainda bem, ao ativismo seja contra o abuso ou negligência de seres humanos, sobretudo os mais vulneráveis, crianças, mulheres em vários pontos do planeta, pessoas reduzidas à condição de escravos., idosos abandonados ou abusados , animais maltratados, etc.
Tudo isso é deveras nobre e necessário, logo louvável e muito inspirador.
O nosso ponto é precisamente esse. Sob o pretexto de se servir convictamente ou mesmo apaixonadamente uma dada causa, ganhamos uma espécie de estado beatífico em que nos sentimos tão confiantes em nós mesmos e nos ideais que defendemos que adquirimos uma espécie de surdez, relativamente ao discurso do outro, caso não seja coincidente com o nosso. Como bons fanáticos em que tornamos, diabolizamos todo o discurso e ação divergente.
Entendamo-nos , é preciso distinguir o que é legal do que o não é.
Felizmente, nos nossos dias , mercê da vontade transformadora dos povos. grande parte de nós vive em regimes livres. E é nesse contexto, e só nesse, que falo.
Posso, pessoalmente, não gostar de caça, tourada ou corridas de galgos, mas isso não me dá o direito de tratar como criminosos os que apoiem essas atividades ou mesmo as pratiquem , se o fizerem no exercício da estrita legalidade. Concordo com eles? Nem por sombras, mas é evidente que uma ideia, se for considerada uma má ideia, combate-se com outra ideia. Claro que tal não é extensível a tolerar ações de violação, trapaça ou abuso. Mais, os seus autores devem ser sumariamente detidos? Claro, pois as suas práticas são ilícitas para além de serem imorais ou mesmo perversas. Mas se alguém quiser compreender o que está por detrás de um violador ou abusador, não passa a ser violador por isso. Tão pouco de deve impedir a reflexão ou o debate sobre o próprio conceito de violação. sob pena de estarmos a condenar algo que não chegamos a conhecer e menos a compreender.
Questionar ou investigar não significa anuir. É procurar as causas mais profundas de um comportamento para poder, eventualmente , erradicá-lo. Referimo-nos, repito-o e aos comportamentos ilegais.
Os que ocorrem dentro da legalidade, ainda que discutíveis ou mesmo, eventualmente e subjetivamente, considerados repugnantes, não têm que ser diabolizados, ao ponto de alguém que procura entender ou defender o ponto de vista que os sustenta, ser considerado tão malévolo quanto os agentes do mesmo.
Claro que podemos ser sensíveis e críticos aos comportamentos machistas ou que tendam coisificar seres sencientes que não humanos. Mas isso não nos dispensa de debater com as pessoas que defendem ou mesmo que são dadas a essa práticas ou ideias.
Nunca se teria abolido a escravatura se não tivesse havido um debate sério sobre a condição do escravo ou a história da escravatura ou até o entender de modo crítico o ponto de vista dos anti abolicionistas quanto o dos abolicionistas.
Uma vez mais uma ideia combate-se com outra ideia, não se esmaga ou se ignora, sob pena de a ideia sobrevivente, por razoável que seja não se cimentar, pois é meramente objeto de uma fé cega e não de aceitação razoável.
Esta questão transporta-nos para aquilo que consideramos, a essência do problema, o comportamento anti democrático de muitos defensores de ideais e princípios inteiramente estimáveis em si mesmos.
Ser contra a escravatura é uma atitude civilizada, em linha com a contemporaneidade, a atual jurisprudência e o conceito vigente de dignidade humana. Não pode ser igual a condenar, às vezes sem qualquer fundamento, quem se convencionou que no passado, não tenha condenado essa prática . É tão absurdo profanar a estátua de Pe. António Vieira a esse respeito, como considerar os portugueses, como um todo, como racistas ou esclavagistas.
De resto, sinal dos tempos, causas nobres como a igualdade de género ou o combate ao racismo, tornaram-se bandeiras como uma tal dimensão icónica que frequentemente que as agita perde a noção da pertinência da sua aplicabilidade.
Exemplarmente, todos pudemos assistir ao triste espetáculo de uma super atleta do ténis internacional, justamente advertida, de acordo com as regras por um juiz numa final, insultar o mesmo juiz brandindo o espectro da sua advertência /penalização teu cunhos racistas ou sexistas. É de facto lamentável o aproveitamento de causas nobres para ocultar falhas grosseiras de caráter.
Relativamente ao problema das culpas comunitárias questinamos:
Se o meu tetra avô foi esclavagista sou tão culpado disso como um alemão nascido em1946 pode ser de o seu pai ter sido SS.
A menos que se acredite na ananké ( destino) da tragédia grega a que os seus heróis estavam sujeitos, podendo ainda assim revoltarem-se contra esse destino Híbris (insubmissão)quase sempre com consequências catastróficas para as personagens heroicas.
Ou seja, não faz nenhum sentido promover a cultura da censura sobre quem entendemos que esteja manchado com um qualquer pecado que tememos ou detestamos. Nisso, quem o faz não se distingue dos fanáticos que decidiram que todos os judeus eram desprezíveis ou todos os defensores do sistema capitalistas eram inimigos do povo.
Quando não se debatem as ideias, sobra a atitude fervorosa, é certo, de quem acredita e as defende sem limites e sem sentido crítico. Isso pode ser aceitável na preferência estética ou religiosa mas perigoso quando se trata de princípios de Filosofia social e política que afetam toda a comunidade. Perigoso, porque ao reduzir quem não pensa como nós, a ser diabolizado e visto como intolerável inimigo. Logo hostilizado ou ignorado.
Escusado será dizer que essa prática é a negação da via democrática no que ela nos oferece de melhor: a liberdade de debatermos e escolhermos nos limites da lei. Se a lei não é justa ou boa, ainda aí teremos a oportunidade de a examinar e propor a sua reinvenção. Não se impõem novas leis a cacete ou sob o opróbrio da suspeição.
Como se ensina em filosofia, reduzir campo de escolha em ser por mim e ou contra mim , é criar a falácia do falso dilema. Posso concordar ou discordar e.... ou mas.... Isto é, sob a capa da coragem e da clarividência os arautos das teses absolutas, sejam à direita ou à esquerda, estão a estigmatizar, ajuizar dogmaticamente e não a debater ou a aprofundar. São práticas perigosas pois não dão espaço para sermos na diversidade das nossa consciências e das escolhas refletidas que nos caracterizam como agentes humanos.
É mais fácil gritar, agredir ou matar do que conquistar terreno, laboriosamente, através da dialéctica argumentativa e no respeito pelo interlocutor que não é um mero ouvinte ou uma coisa, uma couve flor, como diria Sartre.
O mundo duma só cor poderá ser uma ideia tentadora, para os que defendem o tom único.
Por muito boas que as ideias sejam , quando se silencia ou se agride de alguma forma em seu nome, será legítimo duvidar da sua bondade ou da forma que essas ideias estarão a tomar.
José Manuel Marques
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