Ninguém pode, a não ser por abuso, tratar os portugueses como se não estivessem conscientes de que os tempos estão difíceis Pode-se sempre dizer que qualquer tempo é um tempo de exigência para os intelectuais, embora os intelectuais não tenham uma história particularmente brilhante de "interpretação" dos tempos. Bem pelo contrário, os intelectuais têm uma história no século XX de participarem activamente nas grandes mentiras do século, fascismo e comunismo em particular, e de justificarem as mais monstruosas das ideias e das práticas, quando estas enunciavam, mais do que praticavam, dar-lhes um papel de interlocutor privilegiado na "interpretação" do que se passava.
Mas, também por isso, tempos como os de hoje são particularmente exigentes para a réstia de função que ainda podemos atribuir aos intelectuais. Por duas razões: há uma enorme circulação de mentiras em curso, e há um enorme sofrimento na maioria das pessoas comuns e uma perda colectiva da esperança, em si mesmos, na sociedade, na democracia, no país. Esta é a crise perfeita, como a tempestade perfeita.
Comecemos pelo sofrimento. A não ser em
guerra, onde todo o tipo de violências, a começar pela morte, marca
indelevelmente a vida de cada um, o plano inclinado da pobreza e da miséria são
particularmente destrutivos. Não estamos numa parte do mundo onde se morra à
fome, onde a vida seja destruída por epidemias evitáveis, ou no limiar da
subsistência. Nem vale a pena perdermos tempo com esses exageros que muitas
vezes nos deitam à cara, para estarmos mesmo assim felizes porque não passamos
o pior. Não é a miséria africana, a violência urbana latino-americana, o
espectro da pobreza asiática do Bangladesh.
Não é isso. É uma sociedade europeia,
saída ainda há muito pouco tempo de uma pobreza ancestral rural e de bairro de
lata, da emigração e da tuberculose, da mortalidade infantil e do
analfabetismo, para um mínimo de condições de vida, de esperança, de conforto
urbano, de consumos "espirituais", de posse de alguns bens materiais
e de segurança e alguns direitos precários. Tudo pouco acima do mínimo, com
diminuição da pobreza, criação de uma classe média, e também retorno de alguma
riqueza. A diferenciação social e a exclusão continuaram, mas foram colocadas
num patamar diferente.
Daí as mentiras e a petulância. Um
secretário de Estado resumiu essa mentira entranhada quando afirmou no
Parlamento que os portugueses deviam estar felizes porque iam ter a devolução
de um dos subsídios tirados, porque o Governo cumpria, presume-se com alegria,
a decisão do Tribunal Constitucional. Aliás, ele apenas se excitou
canhestramente com uma das muitas mentiras circulantes cujo melhor exemplo é o
Orçamento do Estado e as sucessivas avaliações positivas da troika,
peças de uma política cujos perigos dois ou três dias depois vem o FMI
enunciar. A verdadeira avaliação da troika é essa, repete o que toda a
gente está a dizer do Orçamento, antecipa o que vai acontecer, mas "Tout
va bien Madame la Marquise".
Há por isso mais verdade, na tentativa tardia e desesperada de no Orçamento comunitário se tentar obter o maior número de fundos para Portugal, do que no mambo jambo irreal do nosso Orçamento. Porque, face ao falhanço dos méritos da política de "ajustamento", os nossos governantes, mais Passos do que Gaspar, voltam-se desesperados para as ajudas europeias, porque sabem que são a única esperança de poderem minimizar as suas asneiras. São hayekianos cá dentro e keynesianos lá fora e serão o que for preciso porque se começa a perceber o desespero nas hostes.
Na
verdade, os portugueses também já "ajustaram" os governantes.
"Miúdos", "garotos", como o povo manifestante bem intui,
percebendo a sua inexperiência da "vida", saídos da pior escola,
carreiristas e espertos, obcecados pela "imagem" mediática,
conhecedores de mil e um truques, tão vingativos como ignorantes, deslumbrados
pelo seu poder actual, subservientes face a todos os poderosos, e que
incorporaram um profetismo grandioso sobre "refundar" o país, que
rapidamente se torna numa luta pela própria sobrevivência política, custe o que
custar. O resto é expendable, no inglês técnico de que gostam.
Pode ser que, mais uma
vez, os intelectuais traiam, com a obsessão de respeitabilidade, o respeitinho
moderado e o sufoco dos bens escassos para distribuir. Mas a obrigação do
intelectual, como escreveu Emerson, é "anular o destino", pensar para
haver "liberdade". Presos neste miserável destino, o sofrimento de
muitos é uma efectiva ameaça à liberdade.
(Versão do Público de 24 de
Novembro de 2012.)
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