As sociedades humanas estão em
permanente mudança. Há uma mudança subterrânea, invisível, e outra visível, que
se processa à luz do dia. Os países mudam, os regimes mudam, as cidades mudam,
as pessoas mudam, os hábitos mudam.
Entre as mudanças visíveis, há uma muito notória e superficial: a que diz respeito à moda. A moda no vestuário muda permanentemente, para obrigar as pessoas a comprar. Até às últimas décadas do século XX, a moda mudava de cinco em cinco anos, ou de dez em dez. Recordo a revolução das minissaias, que se mantiveram muito tempo in, e as calças à boca-de-sino, que ainda usei na minha juventude e que duraram uns bons anos.
Agora, porém, a mudança é estonteante. Ainda uma moda não foi totalmente assimilada e já está a aparecer outra. Dos shorts curtíssimos nas mulheres, a meio das nádegas, passa-se num ápice para as saias até aos pés; dos modelos de sapatos terminados em bico acentuado passa-se para os arredondados, fazendo lembrar os das campónias de há 30 anos; dos sapatos rasos, tipo sabrinas, passa-se às plataformas que põem mais 10 cm na altura das proprietárias.
O mesmo fenómeno de moda observa-se nas novas tecnologias, ‘obrigando’ os fashion dependentes a trocar permanentemente de smartphone ou de tablet.
O que é preciso é estimular o consumo.
Claro que esta febre consumista entra em choque frontal com o período de crise que estamos a viver. Há um conflito entre a vertigem do consumo e a necessidade de cortar nas despesas. Que talvez seja resolvido pela baixa significativa dos preços e não pela redução abrupta do consumismo. As lojas dos chineses e afins (onde se vendem calças a 3 euros!) têm aqui uma boa oportunidade.
Mas as mudanças que me interessam mais têm a ver com as pessoas e os seus hábitos. Não é só o que vestem – mas também como vestem e como se comportam.
Olhemos para os piercings, por exemplo. Quando era criança, impressionavam-me as imagens de tribos africanas onde os nativos apareciam com os narizes, as orelhas ou os lábios furados com adornos. Essas fotos ficaram-me na memória como símbolos de formas primitivas de civilização.
Ora qual não é o meu espanto quando as vejo surgir de rompante nas ruas das nossas cidades. Quando começo a ver pessoas com argolas no nariz, nas orelhas e na língua, sobretudo os que também as usam nos mamilos, no umbigo e até no sexo!). E com as tatuagens sucedeu o mesmo. Antes, praticamente só se viam tatuagens nos soldados que iam para África, para a guerra colonial – ostentando nos braços frases como «AMOR DE MÃE», ou corações com o nome da mulher ou da namorada.
Mas agora é um ver-se-te-avias. Há pessoas com o corpo literalmente coberto de tatuagens. Há jogadores de futebol em que não se vê um centímetro de pele nos braços. Para muita gente, a nudez deixou de ser nudez. Um homem ou uma mulher despem-se e parecem continuar vestidos, com os corpos cobertos de inscrições. Além de que ficam com um aspecto sujo, mal lavado.
E que dizer dos cabelos? Na geração dos meus pais, os homens usavam meia dúzia de penteados, se tanto: risca ao meio (já rara), risca ao lado e cabelo penteado para trás. Depois havia os carecas, que tentavam disfarçar a calvície puxando os raros cabelos para tapar as zonas despovoadas.
A grande revolução capilar foi feita pelos Beatles – que apareceram com os cabelos compridos, tipo pajens. Os jovens deliraram, e milhões em todo o mundo usaram cabelo ‘à Beatle’. Porém, subitamente, começaram a aparecer pessoas com a cabeça rapada à navalha. Primeiro eram os militantes de extrema-direita, os skin- heads. Mas depois a moda alastrou a todos os quadrantes, com particular adesão na classe os futebolistas. Não sei como fazem para ter aquelas carecas brilhantes e luzidias. Raparão o cabelo a si próprios? Ou irão ao cabeleireiro todos os dias (como alguns cavalheiros antigos que frequentavam diariamente o barbeiro para fazer a barba e arranjar as unhas, seduzindo de caminho as manicuras)?
Depois das carecas rapadas à navalha, apareceram os penteados meticulosamente despenteados, ou seja, cabeças que parecem acabadas de sair do duche. E há ainda os escalpes: parte da cabeça rapada e outra por rapar. E as cristas. Que há muito tempo víamos nos filmes de cowboys e índios – não me passando pela cabeça que ainda haveria de ver pessoas com o cabelo assim passeando tranquilamente pelos centros comerciais.
Há muitos outros hábitos que me parecem aberrantes. A moda dos ténis desapertados ou da fralda da camisa de fora. Antes, era um sinal de aprumo os rapazes terem a camisa dentro das calças. A minha avó dizia-me constantemente, quando eu chegava esbaforido a casa depois de ter passado horas a jogar à bola na rua: «Mete a fralda para dentro». Ter a camisa de fora era sinónimo de desleixo.
Hoje, pelo contrário, usar a camisa fora das calças é um sinal de modernidade. Melhor ainda é vestir um pullover e deixar a camisa a sair por baixo. Em termos lógicos, não faz o mínimo sentido: o lógico seria a camisa entrar nas calças – e depois o pullover cobrir tudo, não deixando entradas de ar. É o mesmo que se faz na construção civil, cobrindo as juntas.
Mas este desleixo calculado não se observa só nos cabelos despenteados ou na fralda de fora – observa-se também na roupa rota. Ou melhor: na roupa que se compra já rota, como se fosse velha. Parece absurdo, mas é verdade: fabricam-se peças de roupa nova – e depois estragam-se deliberadamente na fábrica para parecerem usadas. Já não falo dos cintos apertados muito abaixo da cintura, que obrigam os utilizadores a andar de pernas abertas para as calças não caírem.
O problema é que todos estes fenómenos vão no mesmo sentido. E não se diga, ingenuamente, que são sinais de mudança. Eles revelam uma crise muito profunda, uma civilização decadente. São sinais de cansaço de uma sociedade que atingiu o apogeu e que, já não sendo capaz de evoluir ou de se reinventar, tem de regredir, andar para trás.
Regride para formas primitivas – como as tatuagens ou os piercings.
Regride para o desleixo planeado, como a fralda ostensivamente de fora, os cabelos cuidadosamente despenteados ou a roupa deliberadamente rota.
Regride nos costumes.
A nossa civilização cansou-se da normalidade e há nela uma vertigem de destruição. Que se nota no vestuário, nos hábitos, até na conflitualidade política – que atinge níveis anormais. Nenhuma sociedade pode sobreviver muito tempo com os níveis de conflitualidade política que temos neste momento em muitos países do Ocidente, a começar por Portugal.
Hoje sente-se uma volúpia de derrubar barreiras, quebrar valores, partir tudo. Caminhamos na direcção do caos. A questão está em saber se vamos mais depressa ou mais devagar
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