À semelhança do que acontece no futebol, em que todos roubam o que podem e só os adversários o fazem com acinte, a moralidade, no país dos partidos e dos fanáticos dos partidos, é questão de perspectiva. Mesmo que se desconfie, ou até se prove, que Fulano desvia fundos comunitários, aceita subornos e nas horas vagas atropela velhinhas por gozo, os seus fiéis estarão sempre prontos a ignorar os deslizes do chefe na medida em que Sicrano, o chefe dos rivais, também escapou a umas multas por estacionamento em 1982 (ou ao atropelamento de velhinhas em 2005).
Vem isto a propósito do "caso" Tecnoforma. A título de esclarecimento, noto que votei nos senhores que nos governam, por exclusão de partes e talvez por incúria. Informo ainda que acho o Governo em funções uma coisa deprimente, se bem que menos nocivo do que os antecessores e os candidatos a sucessores. Se, contas feitas, PSD e CDS não mudaram quase nada do que se impunha e preservaram quase tudo o que se evitava, acredito que Portugal estaria bastante pior se o Eng. Sócrates tivesse continuado a sua senda de "momentos históricos" e voltará a piorar imenso se o Dr. Costa (em princípio) pegar um dia nisto.
As referências ao PS, porém, terminam aqui. Não pretendo evocar o Freeport, a Universidade Independente, os projectos na Guarda, as escutas do Face Oculta, os apartamentos de Lisboa e Paris e, lá está, as violações do regime de exclusividade parlamentar a fim de relativizar o que apenas os ceguinhos, ou os portugueses, se me permitem a redundância, relativizariam. As alhadas de Pedro Passos Coelho não se desculpam através da culpa alheia.
E a alhada em questão, revelada pela revista Sábado e entretanto assaz popular, resume-se aos 150 mil euros que o Dr. Passos Coelho terá recebido indevidamente entre 1995 e 1999 (por causa da exclusividade do deputado que então ele era) e omitido ao exacto fisco que agora nos consome com sofreguidão. Embora a certeza do crime esteja por apurar, não confortam as garantias de honestidade fornecidas pelo próprio, além dos pedidos ao Parlamento e à Procuradoria-Geral da República para que o ajudem a recordar se recebeu ou não uma quantia que, com sorte, o cidadão médio demora dez anos a ganhar. Por incrível que pareça, residir em Massamá e voar em turística não asseguram a honra de um homem.
Se a história se provasse, não importaria a palavra dada à AR, a baixeza da denúncia anónima, a estabilidade, o futuro, o passado de trapalhadas que outros cometeram: o Dr. Passos Coelho deveria demitir-se. Mas não se demitirá, visto que os obstáculos do costume impedem que se saiba a verdade e a verdade não preocupa o eleitorado, que já condenou ou absolveu o primeiro-ministro de acordo com antipatias ou simpatias prévias. Quem hoje exige a queda do Dr. Passos Coelho defendia ontem o radioso currículo do Eng. Sócrates contra a "cabala". E quem ontem atacava o descaramento do Eng. Sócrates apoia hoje a firmeza do Dr. Passos Coelho. A política é suja porque o País não é muito limpo.
Terça-feira, 23 de Setembro
Testemunhas do vácuo
De vez em quando, regressa a ofensiva. Agora foi o físico britânico Stephen Hawking a proclamar, com vasta repercussão, que Deus não existe. Mesmo para um ateu como eu, ou sobretudo para um ateu, estas batalhas de certo ateísmo para aborrecer os crentes são um nadinha tontas. Pelos vistos, há por aí imensa gente a quem não basta não acreditar numa entidade divina: dá-se a uma trabalheira para converter os outros à sua falta de fé. Um ateu a sério não perde um minuto a pensar na existência ou na inexistência de Deus. Aparentemente, os ateus militantes perdem boa parte da vida a pensar nisso. O fervor deles é religioso.
Deixando a discussão teológica a cargo de especialistas de ambos os lados da trincheira, o facto é que a formulação do senhor Hawking tende para o pueril. De que maneira é que o homem chegou à conclusão acima? Há um teorema demonstrativo, passe a redundância? Viu a Luz? Ou apenas se levantou de manhã (sem brincadeiras com a doença do senhor) e decidiu assim? E depois temos a arrogância implícita da coisa: o senhor Hawking leva-se em tão alta conta a ponto de supor que a sua afirmação influenciaria um único devoto que fosse?
Qualquer dia, no frenesim de espalhar a palavra contra o Senhor, os evangélicos da descrença batem--me à porta de casa. E eu não abro.
Quinta-feira, 25 de Setembro
Os direitos a adquirir
Pelo menos o Bloco de Esquerda, que voltou a tentar criminalizar o piropo, ainda faz rir. O PS nem isso. Parece que esta semana houve novo debate entre António José Seguro e António Costa. Parece que o debate foi fértil em insultos. Parece que não saiu daquelas cabecinhas a sombra de uma noção acerca do País. Parece que um dos Antónios ganhará o partido. Fascinante.
Como se nota, troquei a contemplação do debate pela leitura da imprensa no dia seguinte, tarefa apesar de tudo mais rápida e suportável. Há limites para os sacrifícios a que um comentador profissional se deve submeter. Em quase todas as profissões existem direitos adquiridos que isentam os trabalhadores de esforços sobre-humanos ou prejudiciais à saúde. Ninguém espera que um técnico laboratorial deguste as mistelas habitualmente testadas em hamsters, ou que um maquinista da CP conduza trinta seguidas (nos tempos que correm, começa a perder-se a esperança de que os maquinistas conduzam trinta minutos). Mas considera-se normalíssimo que um colunista político seja sujeito a repetidas sessões com a parelha de Antónios, independentemente dos malefícios emocionais e até físicos associados a semelhante empreitada. Em quatro décadas de democracia, os colunistas não adquiriram direito nenhum, incluindo o de veto.
O veto é da maior importância. Se um empregado de restaurante pode recusar-se a servir alcoólicos, o colunista deveria poder vetar a emergência de nulidades extremas na política. Para comentar alguém, é preciso que esse alguém mereça comentários. Não é questão de simpatia ideológica: para o bem ou para o mal, Sá Carneiro, Soares e Cunhal eram altamente "comentáveis". Cavaco, Guterres, Louçã ou Jerónimo sempre providenciavam assunto. Com Sampaio, Santana, Sócrates ou Passos Coelho, a coisa já se tolerava com dificuldade. Os Antónios não se toleram. E nós, colunistas que se prezam, não os toleramos a eles. Falta-nos um sindicato, uma greve, uma manifestação na avenida
Alberto Gonçalves in DN
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