quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Reflexão-AG na "Sábado"

Janeiro 10, 2015
Por estes dias, sempre que não estamos a segurar o letreiro do "Je suis Charlie" (Hebdo), fica bem encher a boca de trivialidades e dizer, com estudada pompa, que o atentado ao jornal francês não conseguiu derrotar a liberdade de expressão.
Só uma pergunta: qual liberdade de expressão? A que reduziu Rushdie a um pária? Ou a que forçou o romancista Michel Houellebecq a refugiar-se na Irlanda? Ou a que levou ao discreto sumiço da curta-metragem holandesa Submissão, após o assassínio do realizador e do permanente exílio da argumentista? Ou a que, em 2006 e em toda a parte, autocensurou as caricaturas de Maomé inicialmente publicadas na Dinamarca? Ou a que que, meses depois, retirou uma crónica de Robert Redeker, considerada por quase toda a gente difamatória de Maomé, do site de Le Figaro (além de retirar o próprio Redeker de cena: ainda hoje o escritor necessita de protecção policial)? Ou a que cancelou uma encenação berlinense do Idomeneo, de Mozart, a pretexto da representação de Maomé entre os adereços? Ou a que obrigou inúmeras obras a morrerem logo no pensamento dos autores, receosos de que referências "delicadas" lhes transformassem a vida num inferno ou lhes suprimissem a vida de todo?

No que toca ao Islão, no Islão não se toca, e a liberdade de expressão de que muitos falam é um mito de que pouquíssimos beneficiam – isto se acharmos benéfico andar com a cabeça a prémio. Claro que não faltam por aí valentes dispostos a parodiar a Igreja Católica, a troika ou os adversários do aborto, e a congratular-se a si mesmos pela proeza. Porém, não há grandes registos de perseguidos ou mortos após sentenças da diocese de Leiria-Fátima, do FMI ou dos ditos movimentos "pró-vida". Nos tempos que correm, a nossa liberdade só termina quando começa a susceptibilidade dos muçulmanos.

Por azar, essa susceptibilidade é imensa. Os muçulmanos radicais, bastante mais expressivos do que os moderados, ofendem-se com pouco. A lista das suas vítimas sugere até que se ofendem com nada, já que matam com igual empenho blasfemos e transeuntes, apóstatas e crianças, ricos e pobres, pretos e brancos, infiéis e devotos de Alá. Assim de repente, parece que existir é o único critério para se ser alvo dos psicopatas. Podemos existir de cócoras, a fim de reduzir os riscos, ou de pé, o que os aumenta exponencialmente. O que não podemos é continuar agachados a fingir que ninguém nos subjuga. O que não podemos é continuar a esperar que a evocação dos islâmicos decentes nos salvará dos homicidas. O que não podemos é continuar a repetir "Je suis Charlie" e acreditar que a ameaça sobre a Europa e talvez o Ocidente desapareceu. O que não podemos é confiar que se enfrentem perigos reais com clichés sem sentido. Ou melhor: poder, podemos. Mas se ambicionamos um futuro relativamente longo e digno, não devemos.
AG (Sábado)

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