quinta-feira, 7 de maio de 2015

Reflexão-Adriano Moreira no DN (06.mai2015)

 

O culto da impersonalidade

Num estudo, já de 2011, Mathieu Duchâtel, investigador dos problemas da Ásia, nas Sciences Po, usou o conceito do "culto da impersonalidade" para traçar a caminhada de Hu Jintao até reunir nas suas mãos e vontade a herança do pensamento legado pelo inovador Deng Xiaoping. Também nos ocidentais encontramos exemplos dessa política de apagamento da visibilidade, ao mesmo tempo que, entre outras práticas, procuram reservar a capacidade de falar ao ouvido do príncipe, com a imagem "de um tecnocrata apagado e consensual". É de admitir que a globalização tenha multiplicado os fenómenos assimiláveis, designadamente nas vastas redes burocráticas cuja constituição anda, até pela complexidade, afastada dos olhares das populações dos numerosos países que se congregam, e que frequentemente eles próprios usam o método da política furtiva, isto é, longe da intervenção ou do conhecimento dos eleitorados e dos parlamentos nacionais.

A evolução da União Europeia, designadamente na política do alargamento e da segurança e defesa, tem um passado refletido em muitos dos desafios que a inquietam, mas, nesta data de crise, a questão parece fazer crescer outro aspeto, talvez não novo mas subitamente avultado, no que toca às eleições para os cargos e encargos da governança interna que pertence à soberania sobrante de cada um. Um dos elementos desta situação é de expressão antiga, mas ganhando relevância a partir da crise, que é a substituição do conhecimento da identidade e das capacidades dos eleitos para os Parlamentos em listas partidárias, as quais tornam ignorados os candidatos pelo facto de ser a identidade do partido que avulta no chamamento e na determinação de voto do eleitorado. Muitas reformas do Estado, de tempos a tempos lembradas mas não concretizadas, fazem que permaneça um culto de impersonalidade que provavelmente priva a gestão do Estado de concorrência de capacidades que não apreciam o processo. Mas a questão agrava-se quando a disputa diz respeito a cargos individuais, aos quais é de esperar que concorram individualidades independentes, que podem querer preservar essa independência mesmo quando, em alguma época, passaram pelas exigências da habitualidade do sistema, que pode ele próprio estar frustrado quanto às intenções dos legisladores que o desenharam. Nestes casos, por toda a Europa, vai-se verificando que a intervenção dos meios de comunicação é dominante e que o comentarismo vai desempenhar uma função criativa no sentido de construir a imagem do candidato, eventualmente sem vida política relevante, e reserva no que respeita à sua intimidade.

O resultado, com probabilidade de não ter sido querido ou programado, é que o eleitorado seja chamado a votar numa imagem apressadamente criada, porque as pregações são curtas e as matérias são escassas, mas não sobre a realidade humana, insubstituível, discreta, que a cada um pertence. Os rituais das manifestações públicas pertencem mais ao Estado-espetáculo do que ao interior das coisas, e os desastres que temos visto destruir o projeto dos fundadores da União Europeia encontram aqui uma parte da causalidade, como que oculta, que os determina: os decisores que governam a União, pela maior parte não são do conhecimento personalizado do povo europeu. Ora, não faltam avisos de que o risco em que as sociedades europeias, e mundiais, vivem está em crescimento e não em regressão, pelo que o "culto da impersonalidade" não é o mais indicado: nem para os programas, nem para os proponentes, nem para os candidatos a qualquer das parcelas da responsabilidade e do poder de governar. Isto porque não chega assumir as teorias que são capazes de certezas de caminho único, também é indispensável conhecer a realidade dos candidatos. E nisto os meios de comunicação social, sobretudo em relação a casos de independentes, são um amparo indispensável dos eleitores, não do Estado-espetáculo.

Adriano Moreira no DN (07.05.2015)

 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário