quinta-feira, 15 de maio de 2025

Reflexão - Alexandre Borges

 (sublinhados meus)


A vida é uma caixa de comentários

Estamos a poucos anos de ter comentadores de comentadores, espaços de comentário onde se analisa os analistas, a consistência ou inconsistência deles.

De acordo. Certamente, nenhum pai alguma vez ouviu dizer: “Papá, mamã, quando eu for grande, quero ser comentador.” Não é a carreira que mais enche o olho sonhador a uma criança. Não é aquele talento que pulsa nas veias e para o qual se encontra, ou não, explicação (“Ah, já o avô comentava muito bem…”). Mas a ideia de que o “comentário” seja algo meramente adjacente ao facto, acessório satélite aposto a um qualquer acto primordial, também não é inteiramente justa. O termo “comentar” chegou-nos, praticamente, sem estrago desde o latim original “co-mentare” e significa “pensar com”, isto é, com base em, a partir de. Toda a filosofia se baseia nesta ideia, a de que ninguém reflecte a partir do zero, como se não existisse mundo antes, história, tradição de pensamento. Todos os pensadores, todos os filósofos, são comentadores, mesmo que para recusar, negar, destruir, o já pensado. Platão comentava Sócrates; Aristóteles, Platão; São Tomás de Aquino, Aristóteles. Dá logo outra dignidade à função. Há muito que há comentadores; é útil que haja comentadores. Dito isto, não será ir um pouco longe de mais pôr quatro pessoas a comentar um frente-a-frente entre, digamos, Inês Sousa Real e Paulo Raimundo? Em cada canal? Quatro adultos? Quanta terra é que eles cavavam naquela meia hora? E não seria mais útil? Não estamos a afirmar; só a pensar. Aqueles oito bracinhos meia hora em batatinhas, hum?

É, provavelmente, uma causa perdida para a civilização e a garantia de que a indústria dos fatos e camisas nunca perderá fulgor. De eleição para eleição, há mais canais, com mais comentadores, com mais tempo de comentário. Antigamente, tínhamos o Nuno Rogeiro para analisar tudo, das guerras no Golfo Pérsico ao jazz de fusão; hoje, temos a preocupação de garantir que não noticiamos nada que não seja, depois, filtrado por um painel composto por, pelo menos, um comentador de cada cor política, género, faixa etária e signo – e um agnóstico com ascendente em Balança. Para analisar, atenção, não oráculos religiosos que falam em linguagem altamente simbólica, não para descodificar mensagens em hebraico antigo, não para traduzir para leigos o debate entre especialistas em mecânica quântica avançada, não. Para dissecar o que disse Inês Sousa Real. E Paulo Raimundo.

Aceitando que é um movimento imparável, podíamos, ao menos, começar a trabalhar na sofisticação do conceito. Se, no fim, pouco há a dizer e o que importa é dar uma nota, porque não um júri de patinagem artística que se limitasse a levantar um cartão com uma nota de 1 a 10? Ou um mecanismo tipo “The Voice” em que se criava a expectativa para ver se, digamos, a Ana Gomes virava a cadeira, convencida de que era o Pedro Nuno a falar e, afinal, era o Luís? Ou então, adoptar os mecanismos da crítica de arte. Se sentássemos os críticos de cinema do Público ou do Expresso a ver os debates, era tudo corrido entre as duas estrelas e a bolinha preta. “A evitar”, “um cliché do princípio ao fim”, “um Álvaro Cunhal da loja dos 300”, “o mestre Sá Carneiro deve estar às voltas na tumba”, diriam – e não estariam errados. Já se fôssemos para os de música, sempre ansiosos por serem os primeiros a descobrir os próximos Beatles, o resultado seria mais galvanizante: “Rui Tavares é o Mark Kozelek da esquerda europeísta”, “Rui Rocha, o Jarvis Cocker por quem os liberais esperavam”, “Pedro Nuno, esse cartaz era uma canção dos Moloko”.

Estamos viciados em comentadores e duvido que seja fácil para os comentados. Já não bastava terem de se preparar para as perguntas do jornalista e estudar o programa do adversário; os candidatos, agora, têm de treinar a pensar no que vão dizer dele o João Maria Jonet e a Maria Castelo Branco. E não é só na política; é no futebol, na actualidade internacional, na vida privada dissecada nos programas da manhã pelas tertúlias cor-de-rosa onde, basicamente, se ligou uma câmara de televisão ao salão de cabeleireiro. Existir passou a vir com caixa de comentários; ganha direito à salvação o que for menos arrasado. Estamos a poucos anos de ter comentadores de comentadores, espaços de comentário onde se analisa os analistas, a consistência ou inconsistência do Pedro Marques Lopes, se o Daniel Oliveira foi pertinente ou mais do mesmo. Até à loucura, numa espiral de comentários que termine num ruído branco qualquer, tipo frigorífico, que, com sorte, já nem ouvimos.

Para a mãe do Forrest Gump, a vida era como uma caixa de chocolates – nunca sabíamos o que nos ia sair; em 2025, é mais caixa de comentários, nem sempre feitos por Q.I.s muito superiores ao do bom Forrest. Devolvam-nos o jogo entre equipas do meio da tabela sem comentários. Só os comentadores que não saibamos de antemão o que vão dizer. Ou, um dia destes, ainda acabamos a confundir um comentador com o Presidente da República.

Ah, esperem…

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