sexta-feira, 23 de maio de 2025

Reflexão - A revolução em slow motion (Gonçalo Poças)

 (sublinhados pessoais)


A revolução em slow motion

O Chega será uma faca sobre a cabeça do liberalismo político e institucional, mas é também uma consequência do desprezo a que foram votados os temas abandonados pela direita e interditos pela esquerda

1As eleições legislativas de domingo passado não foram um terramoto. Os terramotos são, para os comuns mortais, inesperados. Foram antes o momento em que se pode vir a consensualizar que estamos a viver, de há uns anos a esta parte, uma revolução lenta, progressiva e geracional, que talvez venha confirmar que Portugal vive mesmo por ciclos de 50 anos. Tal como o situacionismo da ditadura deu lugar, após 1974, a um novo situacionismo — o de Abril institucionalizado, domesticado, cristalizado em partidos-empresa, carreiras públicas partidárias e um moralismo esquerdista insuportável. Esse situacionismo prepara-se para ser substituído por outro. Não por uma juventude bêbeda de terceiro-mundismo e Maio de 68 que ambiciona viver em democracia (alguns, pelo menos) e sem guerra de África, mas por uma mudança geracional que, tendo a democracia como garantida, já não aceita o situacionismo instalado, nem a esquerda como bússola moral.

Esta revolução não se apresenta com bandeiras, mas com cansaço civilizacional; não ergue barricadas, muda votos. E como todas as verdadeiras revoluções, começa por ser invisível para quem vive no conforto das certezas ideológicas e da sua superioridade moral, política, intelectual. Digo eu, que nem gosto de revoluções.

O empate técnico entre o PS e o Chega, que dividem o Parlamento com 58 deputados cada (sendo mais do que provável que o Chega acabe por ficar com mais eleitos, contados os votos da emigração), é mais do que um equilíbrio aritmético. É o legado do mesmo erro político de origem: o circunstancialismo de 2015.

António Costa foi um desastre institucional, disfarçado de pragmático talentoso.  Ele sim um terramoto, mas apreciado. Aclamado por tantos como mestre da manobra, foi apenas um sobrevivente dotado de instinto partidário, mas destituído de sentido de regime. Quebrou regras não escritas, relativizou a ética institucional, e transformou a convivência com a extrema-esquerda em normalidade funcional. Criou a ideia de que tudo é táctico, tudo é negociável, tudo é descartável.

Mais grave: banalizou o radicalismo, primeiro incorporando-o na sua fórmula de governação, depois tentando usá-lo como espantalho para se perpetuar. Na lógica de Costa, o Chega era um trunfo — e, como se viu, acabou por crescer com a própria histeria à sua volta.

A culpa não é só dele. PSD e CDS foram, durante anos, cúmplices por omissão. Lideranças tímidas, presas a uma narrativa mediática que confundia moral com medo, deixaram-se sequestrar pela lógica das redações — que há muito confundem jornalismo com militância cultural. Resultado? A direita clássica está em erosão eleitoral constante, e ninguém parece interessado em traçar essa linha histórica: preferem olhar para cada eleição como se fosse um jogo isolado, em vez de observar a deriva social lenta que corrói a sua base.

A geringonça, saudada como inovação criativa da democracia, foi uma fraude política, montada com cola partidária e cinismo orçamental. O PS, numa obsessão com superavits milimétricos, falhou o maior investimento estratégico do nosso tempo: acomodar com dignidade e planeamento um milhão de novos residentes em Portugal. Cedendo às exigências da extrema-esquerda em imigração, habitação, educação e segurança, o PS tornou-se refém da sua própria incapacidade de governar e da sua obsessão em manter poder. Geriu para a manchete — agora é capa de jornal novamente, pela humilhação.

A extrema-esquerda, por seu lado, continua no altar da sua superioridade moral, como se nada tivesse acontecido. Perdeu influência, perdeu contacto com o eleitorado popular, e foi buscar dinossauros políticos para mascarar a ausência de ideias novas. Acabou como os dinossauros: extinta. Porque, no fim de contas, nem tudo é mau.

E depois, há o Chega. Não, não é uma marcha sobre Lisboa, não é uma ameaça à democracia. Será uma faca sobre a cabeça do liberalismo político e institucional, mas é também uma consequência direta do desprezo a que foram votados os temas abandonados pela direita e interditos pela esquerda. Ventura dá voz — de forma rude, mas eficaz — ao revanchismo dos que se sentiram humilhados pelo sistema. O mesmo revanchismo que, durante anos, a extrema-esquerda representou sob a capa da revolta contra o “capitalismo”. Hoje, essa esquerda está ocupada com cartilhas de linguagem, a policiar microcomportamentos e a manifestar a sua bondade e a sua superioridade sobre todos aqueles que sentem problemas no quotidiano, ou acenando com políticas de que uma ampla maioria dos portugueses foge (como é que alguém se lembra de atacar a propriedade privada, quando o imobiliário é hoje o maior activo das famílias portuguesas?). Enfim, tudo isto merecerá um texto próprio.

A Iniciativa Liberal arrisca tornar-se um botão num casaco de fecho éclair. Tem caminho por onde seguir, mas se insiste no que tem trilhado arrisca consolidar-se como o partido que não serve para nada. Um pouco como o Livre, mas com pior imprensa.

Este resultado dá à AD um balão de oxigénio institucional, é verdade. Mas o ar que se respira já é outro. O tempo é de combate político, mas só o vencerá quem perceber em que tempo vive. Caso contrário, estão todos a prazo.

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