(sublinhados pessoais)
Brilhante!
Uma espécie de esperança
É curioso ver as forças políticas que se batem pela cidadania de 1,5 milhões de imigrantes não mostrarem quaisquer escrúpulos em ignorar os direitos cívicos de quase 1,5 milhões de portugueses.
As teses, a cargo de especialistas legitimados pelas televisões, são abundantes e um tanto contraditórias. Resumindo, para uns os eleitores do Chega são fascistas e racistas que votavam no PS e no PCP e decerto não eram fascistas e racistas então. Para outros, os eleitores do Chega são fascistas e racistas que vêm do PSD, onde eram um bocadinho fascistas e racistas e tinham vergonha de o assumir. Outros ainda reparam no pormenor de que o Chega é pelos vistos o partido mais votado entre os indivíduos dos 18 aos 35 anos, ou seja, que os eleitores do Chega são em boa parte fascistas e racistas jovens sem grande currículo eleitoral anterior, e que afinal a “geração mais bem informada de sempre” é manipulável pelo TikTok e traquitanas afins.
Metade dos especialistas confessa-se preocupadíssima com a situação. A metade que sobra, embora igualmente aflita, apresenta soluções, de três tipos diferentes e consequências idênticas. A primeira solução consiste em concluir que o povo é, além de fascista e racista, cretino, logo deve ser idealmente impedido de votar ou no mínimo enxovalhado até desistir de o fazer. A segunda solução consiste em decretar a proibição sumária do Chega, método que devolveria os fascistas e racistas aos partidos democráticos (os da esquerda) e aos partidos parcialmente fascistas e racistas (os da “direita” que é democrática quando convém aos especialistas).
A terceira solução apresentada pelos especialistas é aquela que, depois de aplicada em 2024, se prepara para ser repetida. Funciona assim: aceitam-se a custo os resultados eleitorais e “anulam-se” os resultados do Chega, em que nenhum dos demais partidos se pode roçar sob pena de esconjuração e, claro, acusações pertinentes de fascismo e racismo (abre-se uma excepção para eventuais moções de censura ou confiança, em que a esquerda é livre de se aliar aos fascistas e racistas de modo a derrubar o governo da “direita” às vezes democrática). Para efeitos práticos, é como se o Chega não existisse. É curioso ver as forças políticas que se batem pela plena cidadania de um milhão e meio de imigrantes não mostrarem quaisquer escrúpulos em ignorar os direitos cívicos de quase um milhão e meio de portugueses. Não digo que é mau: digo apenas que é curioso. O combate ao fascismo e ao racismo não se questiona.
Tudo somado, o truque para resolver o imbróglio saído da noite de Domingo passa por ignorar a realidade. Costuma correr bem. À semelhança de dois terços dos Três Macacos Sábios, os especialistas e a classe dirigente “tradicional” não querem ouvir nem ver nada que diga respeito ao Chega. Ao contrário do terceiro macaco, não param de falar – e falam exclusivamente do Chega.
O Chega agradece. O Chega gosta de se dizer avesso ao “sistema”, mas nem precisa: o “sistema” insiste em confirmá-lo. As “linhas vermelhas” que a esquerda instituiu e a “direita” às vezes democrática acatou com cómico prazer procuraram em tempos garantir que o Chega se manteria fora do poder. Hoje são a garantia de que, salvo milagres alheios ou deslizes próprios, tarde ou cedo o Chega alcançará o poder. Hoje, e desde o dia 18, o Chega está no lugar que lhe convém. Hoje, o “não é não” tornou-se uma promessa de André Ventura e não do dr. Montenegro, o qual, por convicção, estratégia ou obediência ao zeitgeist, perdeu a oportunidade de comprometer e domesticar e conter a famosa “extrema-direita” (o jargão dos especialistas é “normalizar”). Esse comboio, poupado às greves, já saiu da estação.
Por alturas deste parágrafo, suponho que as “caixas” de comentários comecem a acumular insinuações de que me sinto felicíssimo com o sucesso do Chega e de que as minhas previsões padecem de wishful thinking. Tentarei acalmar as ânsias e, com paciência, responder que não me alegro especialmente com acontecimentos políticos (no limite, divirto-me), que não votei Chega (não votei em ninguém), e que antecipo os desenvolvimentos que julgo plausíveis (e posso falhar). E se? E se eu estivesse radiante com os 58 ou 60 deputados do Chega? E se tivesse votado no Chega? E se desejasse com ardor que o Chega venha a liderar um governo? Seria um crime? Aparentemente, sim, pelo menos na legislação imaginária adoptada pelos donos do regime e os seus inúmeros serviçais.
O que os donos do regime e os seus serviçais não enfiam nas ilustres cabeças é que é essa exacta arrogância a explicar em larga medida a ascensão, por enquanto imparável, do Chega. O que acontece em Portugal, na Europa e na América não é o avanço do “radicalismo”: é o cansaço de imensa gente perante a “moderação”, eufemismo para os arranjos que alimentam “elites” duvidosas à custa de populações humilhadas.
Por cá, a verdade é que uma quantidade crescente de pessoas está farta “disto”, leia-se de uma casta em reprodução perpétua que subjuga o país a uma perpétua penúria e, não satisfeita, goza e discrimina as suas vítimas. As vítimas não são fascistas. Não são racistas. Não são sequer necessariamente possuidores de queixas comuns ou desejos partilhados. São cidadãos que, mesmo que nem sempre saibam com precisão o que querem, sabem o que não querem – não querem “isto”. E o Chega é, ou esforça-se por parecer, a alternativa a “isto”. Falta ao Chega coerência, “quadros”, modos? Sem dúvida. O problema é que a coerência (?), os “quadros” (?) e os modos (?) dos partidos “institucionais” deixaram-nos aqui.
A receita “correcta” falhou. A “incorrecta” talvez falhe – e nessa diferença há uma espécie de esperança. Escassa e se calhar equívoca, de momento é a esperança a que muitos se agarram. Não se queixem deles: queixem-se de vocês.
Sem comentários:
Enviar um comentário