sexta-feira, 23 de maio de 2025

Reflexão - A campanha do medo (Nuno Gonçalo Poças)

 (sublinhados pessoais)


A campanha do medo

Se há coisa que a campanha nos trouxe foi a absoluta certeza de que não há líder partidário que não tenha compreendido que o país não ambiciona outra coisa que não esta: ninguém quer mudar nada.

Começou oficialmente a campanha eleitoral. Outra vez. No próximo dia 18 de Maio somos novamente chamados a votar, depois de longas semanas de debates, anúncios, intrigas, suspeições, desculpas esfarrapadas e, sobretudo, nenhum assunto tratado com coragem, inteligência e elevação. Vamos votar e o acto eleitoral começa a assemelhar-se a um aniversário. Ou um velório, talvez, já que as campanhas se vão sucedendo de forma que começam a despertar mais a curiosidade de quem lê obituários do que o interesse de quem procura um desígnio. As campanhas eleitorais tornaram-se uma espécie de género literário, entre a comédia de enganos e o drama institucional. Há de tudo: enredo, narrativas, personagens, uns acusados de vilanagem, todos buscando o heroísmo. Só não há emoção, nem razão, nem nada.

Os factos sucedem-se, mesmo que nos jornais, nas televisões e nas rádios andemos todos a fingir que eles não são visíveis: os debates, os programas, as frases, os actores, de uma ponta à outra, são de um vazio atroz – e de uma infantilidade atrás. André Ventura, desperdiçado um ano em que se podia ter afirmado como voz firme e alternativa, ou mesmo parceira exigente, não saiu do seu papel de barafustador-mor do reino, e revelou ao país que lidera um partido sem gente e sem substância. Mariana Mortágua, que foi durante anos elevada à categoria de semi-deusa por ter feito uma pergunta banal a Zeinal Bava, terá o resultado que a sua inteligência triste merece, revelado agora o facto de que, enquanto semi-deusa, era apenas semi. Pedro Nuno Santos é um desastre empertigado saído do jardim-escola que ninguém suporta. No meio do deserto, Luís Montenegro, que noutros tempos nem envergadura política teria para servir cafés no Conselho de Ministros, chega mesmo a dar ares de chefe do Governo. É obra.

A democracia portuguesa tornou-se um regime em fadiga. Tem tudo no sítio, mas não sabe o que fazer com o que tem. A política transformou-se num mecanismo de ocupação de lugares, um leasing de poder em que o conteúdo conta cada vez menos, e à volta do qual paira boa parte do jornalismo, que gosta mais do poder do que de desconfiar dele. E o resto do país vive entre o conforto de saber que nada muda e a desesperada vontade de que tudo mude sem que alguma coisa se altere. Não é tarefa fácil para um político, conceda-se, satisfazer tamanha pretensão de um país que se tornou numa massa de cínicos funcionais, pagando contas, fingindo ouvir os políticos, tolerando as elites e sonhando com o Euromilhões, desejando mudanças que não mudem rigorosamente nada.

Se há coisa que a campanha nos trouxe foi a absoluta certeza de que não há líder partidário que não tenha compreendido que o país não ambiciona outra coisa que não esta: ninguém quer mudar nada. O que se deseja é que tudo isto seja outra coisa sem deixar de ser o que é. O ideal do país, do povo às elites, da esquerda à direita, do interior ao litoral, não se mede pelo que pode construir, mas pelo que consegue evitar. A meta desta campanha eleitoral não é transformar, mas manter.

Esta ilusão tem-nos arruinado com competência e esmero. Para quem, ainda há semanas, fazia balanços do 25 de Abril, este é, arrisco, o maior de todos eles: o adiamento cívico a que se convencionou chamar “estabilidade”. O regime, construído sobretudo por gente que tinha mais interesse em fazer-se ouvir a si mesma do que em escutar o que não gosta, abriu, apesar de todas as dificuldades, um espaço de liberdade. O que não conseguimos até hoje fazer, mais de meio século depois, foi habitar esse espaço com coragem e com verdade, assumindo essa liberdade e a responsabilidade que dela decorre. Não a quisemos, nem quiseram que a tivéssemos, forçando grande parte do país a depender do Estado e dos apetites do chefe.

Talvez não cheguemos ao ponto em que se venha a convencionar que a democracia é um problema, e se pretenda outro sistema que prometa mudar sem alterar. Mas o problema não é a democracia, antes o que fizemos com ela. A participação está transformada em automatismo, o voto é uma lotaria, o cargo público é exercício de gestão de danos, a política não é construção, mas cálculo, o jornalismo oscila entre o relato, a obsessão imediatista e a superioridade moral – e o cidadão tornou-se utente em vez de agente.

Daqui a menos de duas semanas há eleições, mas não há alternativas, num país que ainda tem instituições, mas não tem exigência, num sistema que se fundou na liberdade, mas que é hoje o reflexo do medo. Esse medo será o vencedor das eleições. O seu intérprete tanto faz.

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